domingo, dezembro 14, 2025

A menina e os pirilampos

A Menina e os Pirilampos

Numa aldeia rodeada de árvores altas, vivia uma menina chamada Lia. Todas as noites, depois do jantar, ela gostava de caminhar até ao quintal para ouvir o vento conversar com as folhas. Era o seu momento preferido do dia.

Uma noite, enquanto Lia seguia o caminho de sempre, viu pequenos brilhos a dançar no ar. No início pensou que fosse magia — e, na verdade, era mesmo. Eram pirilampos! Pequenos pontinhos verdes que acendiam e apagavam como se piscassem para ela.

Lia abriu um sorriso tão grande que parecia outra estrela no meio da noite.

Mas, de repente, ouviu um som rápido:

— Mrrrrr… tchac!

Era o Gato Neco, o gato da casa do vizinho. Tinha olhos amarelos, cheios de curiosidade, e achou que aqueles pirilampos brilhantes eram brinquedos perfeitos para caçar. Deu um salto, depois outro, tentando apanhar um deles com a pata esticada.

Os pirilampos assustaram-se e começaram a subir mais alto.

Lia deu um passo à frente e abriu os braços como quem protege um tesouro.

— Neco, não! — disse ela num tom firme, mas gentil —. Os pirilampos não são para apanhar. São nossos amigos.

O gato parou, abanou a cauda, e miou como se desculpasse a brincadeira. Depois, sentou-se a observar, ainda intrigado, mas sem voltar ao ataque.

Os pirilampos ficaram tão admirados com a coragem da menina que voltaram a descer devagarinho, iluminando o seu rosto. Durante alguns segundos, Lia parecia rodeada por pequenas lanternas vivas.

E foi assim que tudo começou.

Na noite seguinte, os pirilampos voltaram. E na outra. E na outra ainda.

Passaram a visitar Lia todos os dias, chegando sempre ao cair da noite, como amigos que nunca se esquecem de aparecer. Dançavam à volta dela, pousavam-lhe nas mãos, e até faziam desenhos de luz no ar, só para a fazer rir.

O Gato Neco, agora mais bem-comportado, limitava-se a vê-los de longe, sentado como um guarda elegante. Afinal, também ele percebera que aqueles pequenos brilhos eram especiais.

E assim, entre risos, luzinhas e noites estreladas, Lia descobriu que proteger os mais pequenos era uma forma de magia, a mais bonita de todas.


quinta-feira, dezembro 11, 2025

A barca da salvação

O rio corria fundo, com a transparência antiga das coisas que não mentem.
Na outra margem, um bando de pequenos jacarés inquietava-se,
filhos da aventura antes do tempo.
Queriam atravessar. Queriam o mundo.
E foi então que a raposa vermelha apareceu, silenciosa,
como quem sabe o ofício de viver.

Olharam-na com ousadia.
Pediram-lhe passagem, sem cerimónias nem temor.
A raposa, que conhecia as sombras da mata e o coração das mães,
percebeu logo que não havia ali malícia,
apenas o ímpeto natural de crescer.

Sem alarde, ofereceu o lombo.
Fez-se barca.
Deixou que seis destinos miúdos se ajeitassem nas suas costas.
E lançou-se ao rio, remando com as patas
como quem abre caminho no próprio fado.

A corrente levou-os, mansa,
e nenhum perigo se levantou contra aquela estranha confraria.
Na outra margem, a raposa inclinou-se,
e os pequenos saltaram para a terra firme
com a gratidão muda dos bichos que entendem a dádiva.

Missão cumprida.
A raposa seguiu adiante,
sem pedir louvores,
porque, na natureza,
ser justo basta.

terça-feira, dezembro 09, 2025

A Lenda do Guardião dos Moinhos de Ourém

 

Dizem os mais antigos que, muito antes de as pedras do castelo se tornarem ruínas e de os moinhos pararem de rodar ao vento, a Colina de Ourém era vigiada por um homem solitário e por um companheiro que não era menos do que a alma selvagem da própria serra: o Lobo Velho.

Nessa altura, os moinhos cantavam noite e dia, movidos por ventos caprichosos que vinham do vale. O barulho das pás misturava-se com o som dos pinhais, criando um hino estranho, como se a colina respirasse vida própria.

Conta-se que Jonas Rocha — ninguém sabia donde viera — subiu a colina num inverno em que a neve caía mais branca do que pão de missa. Trouxe consigo pouca coisa: uma espingarda, um casaco gasto e um olhar de homem que já vira demasiado. Mas trouxe também algo que ninguém viu logo: o peso de uma promessa feita a um lobo ferido.

O Lobo Velho, diziam, não era apenas animal. Era espírito guardião. Quem se perdia na noite encontrava-o às vezes, a caminhar entre as sombras, olhos a brilhar como carvões acesos. E quem o via saía ileso, desde que trouxesse o coração limpo.

E assim se mantiveram, homem e lobo, guardando os moinhos, afastando ladrões que tentavam roubar o trigo, ajudando viajantes perdidos, e enfrentando tempestades que faziam as pás dos moinhos rodarem como gigantes enlouquecidos.

Mas um dia chegaram homens maus à colina. Gente que não respeitava nada nem ninguém. Reza a lenda que foi nessa noite que o Lobo Velho caiu, defendendo o seu companheiro como se defendesse a própria terra.

Jonas vingou o lobo, dizem, e a colina tremeu de tal maneira que uma pedra gigante rolou sozinha, esmagando os intrusos. Os velhos costumam acrescentar:
— Foi a colina que decidiu. Jonas só segurou o destino.

Depois disso, o homem ficou sozinho. Cuidou do túmulo do seu amigo junto ao moinho mais antigo, aquele que hoje só tem a base em pedra. E quando terminou a sua vigília, desceu a colina e nunca mais foi visto.

Mas a lenda não acaba aí.

Dizem que, em certas noites de vento forte, quando as nuvens cobrem a lua, ainda se ouve o rodar das pás dos moinhos antigos, mesmo que já nada haja para rodar.

E quem caminha pela colina jura ouvir dois passos:
um passo de homem…
e outro, leve e firme, de animal.

Alguns afirmam ter visto uma sombra grande passar entre as árvores. Outros dizem ter ouvido um uivo profundo, que não é de cão nem de lobo moderno. Um uivo antigo, cheio de saudade.

Os habitantes de Ourém chamam-lhe hoje:

A Lenda do Guardião dos Moinhos.

E todos sabem que a colina, embora silenciosa, nunca está verdadeiramente sozinha.


segunda-feira, dezembro 08, 2025

A Criança e o Grilo

 

Perto da sua pequena toca de terra,
um grilo cantava baixinho, escondido entre as folhas.
Era o seu costume, cantar para sentir que o mundo existia com ele.

Uma criança vinha a passar.
Trazia uma pedra na mão, não por maldade,
mas porque as crianças às vezes carregam coisas
sem pensar muito porquê.

De repente, ouviu o canto.
Chegou-se mais perto, pé ante pé,
até descobrir o grilo, frágil e brilhante como um pedacinho de música.

O grilo olhou para ela.
E naquele olhar minúsculo havia uma doçura antiga,
uma confiança de quem não sabe que o mundo pode ser cruel.
Era um olhar que parecia dizer:
“Eu só sou. Nada mais.”

A criança levantou a mão com a pedra…
Mas ficou parada.
Algo no peito apertou como um nó,
uma coisa estranha entre o querer e o entender.

Ela percebeu, de repente,
que podia destruir uma coisa pequena e bela
sem razão nenhuma.
E essa ideia ficou tão pesada
que os seus dedos desceram devagar.

Largou a pedra.
Não por pena, mas porque aprendeu alguma coisa nova
bem ali, naquele instante silencioso.

Com cuidado, afastou-se para não assustar o grilo,
como quem não quer rasgar um segredo.
O canto voltou, suave,
e por um breve momento
pareceu que o mundo sorria para ela,
orgulhoso da escolha que fizera.

Sermão aos Ungidos do Estado

Ó excelentíssimos ressuscitados por milagre elétrico,
vós que saís do hospital a chiar gratidão
como papagaios em discurso oficial,
claro que agradeceis!
Quem não agradeceria ao privilégio
de ter a fila acordada de madrugada
só para vos abrir caminho?

 

Enquanto isso eu, reles cidadão sem pedigree,
conto as horas como quem conta migalhas:
a minha vez vem sempre depois
do fim do mundo.

 

Que prodígio é esse, senhores,
que faz da saúde um cabaré de convidados
onde só entra quem tem cartão dourado?
O meu corpo não vos serve de metáfora?
Pois aqui estou: carne e osso,
mas sem direito ao vosso milagre de primeira classe.

 

Que se rasgue o pano deste teatro farsante!
Ao povo deixam o aplauso e a dor,
aos políticos, o camarim climatizado.

sábado, agosto 09, 2025

Ainda me lembro da Pipoca

 

Quem abrirá a porta ao gato quando eu morrer?, pergunta o Rómulo,
E o que será do seu corpo redondo, tão gordinho, tão sábio,
com seus olhos sempre à espera da carícia,
do passo que, mesmo após a morte, ainda guardará o eco do meu gesto?
Ah, quem? Quem será capaz de adivinhar
os segredos que ele esconde,
aquela unhada tímida no tornozelo
que, se fosse um abraço, seria o meu último sopro de vida?

 

Ele, o rei da cama, tão discreto,
com seu disfarce de bolinha acolhedora,
não percebe que a sua forma nunca se esconde,
que a barriga cheia de carícias se impõe,
como um eco da minha presença que, no fundo,
ele também conhece sem saber.

 

E quando a porta bater,
será que o vejo correr, sempre rápido,
sempre voltando ao meu lugar,
onde ainda me sinto, onde ainda me ouve,
como se o tempo se recusasse a levá-lo?

 

Ah, quem abrirá a porta ao gato
quando o silêncio se estender sobre a casa?
Ele, que sempre me viu nas sombras da manhã,
sempre foi mais fiel do que qualquer alma,
saberá, ele, o que me resta?


Saberá ele da última resposta
que deixo nas suas patas,
no último olhar que, com os olhos fechados,
também lhe serei?

 

Ele morreu primeiro.
E a casa ficou mais vazia,
não pela ausência do corpo,
mas pela falta daquelas patinhas rápidas,
do seu corpo redondo que, ao procurar refúgio,
tomava o meu lugar,
como se, de algum modo, já soubesse
que o nosso tempo era finito,
e o dele, talvez, mais breve.

 

A porta, que antes se abria ao seu olhar curioso,
agora já não tem os seus olhos a esperá-la.
E onde ele corria, agora é só o eco
do vazio que ele, com sua pequena alma,
deixou. O hábito da unhada carinhosa
não tem mais quem o receba.
Quem serei eu, agora,
se já não sou a mão que o acariciava?

 

Como explicar ao silêncio
que, mesmo o pequeno corpo, redondo e cheio de graça,
era mais forte do que o próprio lamento?
E como contar que, na dor do adeus,
foi ele quem me deixou antes,
me ensinando que a partida de quem amamos
não é um golpe,
mas um suspiro do que, de mais puro,
o amor se torna — um vazio que nos completa,
sem nunca nos deixar.

 

E agora?
Quem abrirá a porta ao gato,
se ele, antes de mim, já a fechou?

quarta-feira, agosto 06, 2025

O verdadeiro crime

 

O fogo, essa besta insaciável,
não brota do nada,
mas da ignorância que se estende,
como o fumo que se espraia sem vergonha.
E não venham com a ladainha
de que o calor é imprevisível,
quando o verdadeiro crime está em quem deixa a terra
à mercê da morte, sem nunca a preparar.

 

Ah, se soubessem que o inverno
é o tempo da guarda, da ação antecipada,
mas não. Preferem esperar pela labareda,
depois que a terra já chora sua cinza,
depois que os bombeiros, esses heróis acidentais,
têm de enfrentar o inferno que poderia ser evitado,
se ao menos alguém tivesse feito a lição antes.

 

Pois que importa a neve que cai,
se a terra queimada não conhece o inverno?
Mas ninguém se importa com isso.
Os que podem prevenir preferem olhar para o lado,
dar o ombro aos esquemas sujos,
e, quando a tragédia chega,
vem com a desculpa de que é impossível evitar.
Mas é apenas falta de vergonha,
de quem aproveita do fogo o que o fogo não pede.

 

Os bombeiros não têm culpa,
eles fazem o que podem,
mas a culpa está em quem não vê
que o inverno é o tempo de fazer
o que a razão exige,
antes que o fogo comece,
antes que a terra clame pela sua alma perdida.
Mas ninguém, claro, se importa com isso.
Deixam arder e depois,
cheios de um falso arrependimento,
dizem que o fogo veio do nada.
E nós, que ficamos,
só temos as cinzas e as farpas da desilusão.

terça-feira, agosto 05, 2025

Balada do Prédio em Noite Roncante

Naquele prédio de betão com alma de penumbra,
reinava o mistério como um senhor de cartola
que, em vez de bater bengala no chão,
batia à porta da Dona Odete,
viúva de guerra nenhuma,
mas mártir da sua própria imaginação.

 

— "Quem bate?" — dizia ela,
com a respiração em suspense
e o robe de flanela a tremer em verso.

 

Era sempre à mesma hora,
o relógio, cúmplice da assombração,
marcava as três badaladas
do susto noturno.

 

A vizinhança?
Surda, muda, ocupada com as novelas da alma.
Do rés-do-chão ao sótão,
ninguém dera fé de vulto ou de sopro.
Afinal, o prédio era tão vivo como um domingo chuvoso.

 

Até que, do fundo do sarcasmo coletivo,
ergueu-se uma voz mais atrevida:

— “Ó Dona Odete… a senhora, por acaso, ronca?”

 

Silêncio.
Um silêncio mais indignado que o Parlamento
em noite sem subsídios.

 

— “Roncar? EU?!” —
respondeu ela, com a dignidade de quem
nunca roncou nem em versos livres.

 

Mas a teoria avançava, destemida:
— “É que, veja bem, o seu quarto é encostado ao do Senhor Rui…
Talvez ele, torturado por sinfonias nasais,
tenha recorrido ao código Morse na sua porta,
sugerindo uma mudança… de posição.”

 

— “Mudar de posição?! Nem pensar!” —
bradou Dona Odete,
erguendo-se como uma heroína trágica
num palco de ladrilhos e esquentadores.

 

E assim ficou o prédio:
entre o espanto e o riso,
com o mistério intacto
e a Dona Odete
a dormir como quem declama Camões em surdina.

Mistério Noturno no Prédio: A Saga da Porta que Bate Sozinha

No prédio da Dona Odete, há uma história que mais parece um guião de filme, só que com menos ação e mais confusão.

A Dona Odete, que já não é propriamente uma jovem promissora, jura que todas as noites alguém bate à sua porta. Ela nunca abre. Medo? Medo! E atenção, não é medo de fantasmas, é medo de “quem é que está a incomodar-me a meio do sono?”

A pobre da Dona Odete foi ficando tão stressada que passou a ser praticamente uma especialista em falar sobre o assunto, quase como um podcast ambulante: “Ontem de novo, bateu de novo, socorrooo!” Só que mais ninguém via ou ouvia algo. Os vizinhos do rés-do-chão, que estavam bem atentos ao que se passava, garantem que o prédio estava mais silencioso do que uma reunião de condomínio que acaba cedo.

 Até que alguém teve uma ideia genial que mudou tudo:

— Dona Odete, diga-me uma coisa... a senhora ronca?

— Eu? Roncar? Nunca! — respondeu ela, toda ofendida, com o orgulho ferido.

— Pois, o seu quarto fica ao lado do do senhor Rui, não é? Talvez ele ouça os seus "sons noturnos" e pense que é sinal para bater à porta e pedir para mudar de posição.

E a Dona Odete, mais ofendida que um juiz de reality show, retrucou:

— Mudar de posição? Isso nunca! O meu sono é sagrado, não aceito intromissões!

Moral da história: O mistério continua. A Dona Odete tornou-se na "rainha das portas batidas", o senhor Rui aguenta os roncos como pode, e o prédio está dividido entre quem acha que é um fantasma e quem sabe que é apenas uma sinfonia noturna desafinada.

Pedimos a alguns dos nossos poetas e criadores de serviço para escreverem algo sobre o assunto. Eles não se fizeram rogados e deram-me material para todo o dia…

sábado, agosto 02, 2025

Avatares da nossa terra. El Nuno

Chega. A caça ao freguês

 

O triciclo e o Ferraz

O caso da manivela impotente

A oficina do Domingos

Chega. A orgia do disparate

Amor... amor... amor

A cesta verde

A leitaria Guerra

Chega. A nova Sibila fala ao povo de Ourém

Mari'milia escuta as pedras

Vieira, Graça e Prino

Casa da Lili. Demolição em quatro actos

Poema para a casa da Lili

Chega. A nova Sibila de Ourém

A quinta da paciência infinita

Crónica da lojas do fim do mundo

Avatares da nossa terra. O Genito

Os dois da casa que já não existe

AD. Autárquicas. Vozes da terra e da troça

AD. Autárquicas. Seiça

Bairro

Chega. Candidata à presidência

O passar do tempo sobre a Casa Amarela

Avatares da nossa terra. O Zé Domingos

Café Avenida

Os três mestres do chafariz

Os carrinhos do posto da GNR

O carrinho do Palhete

Casa do Sol Poente

O meu caderno - Dr. Durão

Avatares da nossa terra. O Amândio

O carteiro do médico veterinário

Homenagem ao nosso amigo Cúrdia

 

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...