sexta-feira, abril 17, 2020

A ação da inspeção de espetáculos

Naquela época, os filmes que chegavam a Ourém eram dominantemente classificados em dois tipos: «Maiores de 12 anos» e «Maiores de 18 anos».
Na sua sofreguidão para fazer dinheiro, o novo porteiro nem pedia o documento de identificação ao espetador. Qualquer lhe servia para aumentar o seu ganho ou o do patrão. Mas a verdade é que existia uma Direção de Espetáculos com o objetivo de zelar para que tudo decorresse de acordo com a ordem vigente. E, um dia, um inspetor chegou a Ourém.
Na sala de espetáculos havia grande expetativa. Todos se preparavam para assistir ao grande filme «Rio Vermelho». A plateia estava bastante composta, assim como o balcão. E a projeção começou, tendo-se iniciado o filme ainda na primeira parte. Ao chegar o primeiro intervalo, todos os espetadores pareciam satisfeitos e ávidos pela continuação do filme.
Mas estava escrito que muitos não assistiriam ao mesmo. Ainda os espetadores não se tinham levantado para esticar as pernas quando um homem acompanhado por dois guardas armados irrompeu pela sala ordenando que todos ficassem nos lugares.
Depois, percorreu o corredor central olhando para um e outro lado com toda a atenção. Chegado à fila L, parou e apontou o Estorietas e os seus amigos:
- Vocês… mostrem os vossos bilhetes de identidade.
Os miúdos apressaram-se a obedecer.
- É o que eu pensava. Nenhum tem idade para assistir a este espetáculo. Mostrem-me os bilhetes…
Eles assim fizeram e o inspetor examinou-os com ar bastante atento.
- É curioso. Estes bilhetes não são iguais aos que vi na bilheteira. Quem foi que vos vendeu?
O Melo apressou-se a esclarecer:
- Não foram vendidos, senhor inspetor. São uma oferta da gestão para a miudagem poder assistir ao espetáculo.
Mas o Estorietas teve de falar:
- Olhe que não, senhor Melo, olhe que não. Cada um de nós pagou um euro por bilhete ao porteiro.
- O quÊ? – gritou o melo lançando as mãos à cabeça.
Naquele momento, ouviu-se o ruído apressado dos passos de alguém. Olharam na direção da porta e viram o porteiro a esgueirar-se a toda a velocidade.
- É o porteiro – dizia o Mário. – Vai a fugir com a receita do espetáculo.
Os polícias foram atrás do homem e, pouco depois, este era apanhado, regressando à sala de espetáculos.
O inspetor voltou-se para o Melo.
- Apesar da sua nobre ação de permitir a divulgação cinematográfica entre os mais jovens, vou ter de o autuar por não ter cumprido devidamente o regulamento dos espetáculos ao não controlar a idade de quem entrava. Mas levaremos em conta as suas boas intenções que ficaram bem patentes na carta anónima que alguém escreveu a denunciar o que se passava.
- Ah! Houve uma denúncia…
- É verdade. Houve alguém que não gostou que a sua boa intenção estivesse a ser aproveitada por um indivíduo sem escrúpulos …
- Nunca pensei… mas para a semana já cá estará o Joia. Isto não voltará a acontecer.
- Terei isso em conta. E agora continuem a ver o filme. Excecionalmente, permito que esses miúdos o vejam até ao fim. Mas essa bagunça acabou aqui hoje.
E as filas de miúdos à entrada da porta do cinema esperando uma borla voltaram a Ourém…

quinta-feira, abril 16, 2020

A forma de burlar o benfeitor

Uma noite, o Estorietas e alguns amigos permaneciam junto à porta do cinema à espera de poderem entrar quando o novo porteiro lhes disse:
- Isto mudou. Para assistirem ao filme devem munir-se de um bilhete e entrar como qualquer outro espetador. É mais simples, pois não têm de estar aqui à espera…
- E como se arranjam esses bilhetes?
- Vêm ter comigo às cinco da tarde junto da bilheteira. E não se esqueçam de que cada bilhete ficará por um escudo…
- Como assim?
- Um escudo por bilhete. Não é nada exorbitante se atenderem a que têm de pagar dez escudos para ver o filme da plateia. Se não quiserem, há outros interessados…
«Tenho de ir ver a Scarlett - pensava o Estorietas, olhando o cartaz de "E tudo o vento levou".»
E a verdade é que tiveram de se apressar a conseguir os bilhetes para a sessão seguinte, pagando um escudo, pois o novo porteiro tinha desenvolvido uma manobra publicitária e outros indivíduos oriundos dos arredores e que não se enquadravam na ideia original do Melo conseguiram alguns bilhetes quase impossibilitando que assistissem ao filme.
«Este indivíduo está a fazer dinheiro abusando da generosidade do Melo» - ruminava um miúdo.
O indivíduo parecia ter cada vez mais sucesso. E um dia conseguiu convencer o Melo a duplicar o número de lugares a disponibilizar naquelas condições, omitindo obviamente que cobrava um escudo por cada um deles. As filas à porta tinham desaparecido completamente e as sessões ostentavam quase sempre uma lotação digna de nota. O Melo sentia-se feliz por dar aquela oportunidade aos jovens para ver cinema à borla, era um benfeitor. O porteiro estava todo contente, pois, com a sua ideia, tinha conseguido melhorar drasticamente o seu magro salário. A miudagem andava feliz, pois um escudo semanal todos tinham e podiam assistir às magníficas coboiadas exibidas no cinema. Parecia que todos estavam a ganhar…

Parecia...

quarta-feira, abril 15, 2020

Cinema à borla para a miudagem

Na polícia, ninguém denunciou o Joia. Como poderiam fazer uma coisa dessas depois da sua meritória ação pela expansão da cultura cinematográfica na terra? Antes revelaram que, umas horas antes do filme se tinham escondido na sala aproveitando uma distração do porteiro, refugiando-se atrás dos maravilhosos cortinados verdes que separavam a sala das portas de saída.
O Melo não ficou muito convencido daquela versão, mas tomou uma resolução definitiva:
- A partir de agora, a fila L fica reservada para os jovens da nossa terra assistirem aos filmes sem pagarem entrada.
Meritória ação…
Graças a ela, alguns jovens poderiam assistir àquelas maravilhosas projeções desenvolvendo os seus conhecimentos e cultura. E o Joia nem teve que mudar o procedimento. Existindo vinte lugares na fila, os primeiros vinte jovens que surgissem podiam contar com uma entrada grátis.
Pode dizer-se que, durante algum tempo, tudo funcionou às mil maravilhas, mas, um dia, o simpático porteiro adoeceu e teve de ser substituído, pelo menos durante um mês, por um indivíduo com má cara residente no Alqueidão que, ao fim de uma ou duas sessões, pensou em aproveitar-se da situação.
«Isto está muito mal gerido desta maneira. Esta fila de miúdos a mendigar uma entrada à porta do cinema dá mau aspeto e até pode afastar as pessoas que pagam bilhete».
Pensando nisto, foi ter com o Melo e propôs-lhe:
- Podemos criar uns bilhetes especiais para a fila L que eles poderão levantar às cinco da tarde e depois entram como qualquer outro espetador sem aquele espetáculo deprimente à entrada. Eu próprio lhos entregarei…
O Melo concordou. Era uma pessoa boa que não pensava que a maldade humana estivesse presente por todo o lado e que alguém a usasse para denegrir a sua obra.


Que irá acontecer?
Que poderá fornecer o novo porteiro para se aproveitar da generosidade do Melo?

terça-feira, abril 14, 2020

Nunca infrinjas os dez mandamentos

Obviamente que, onde há despesas, tem de haver algum controlo. E o Melo batia com as mãos na cabeça.
«Como é possível isto? Só trinta bilhetes vendidos? Mas eu vi umas quarenta pessoas na sala…»
Foi ter com o Mário que lhe confirmou o número de bilhetes vendidos, mostrando-lhe as sobras.
«Não há engano possível. Como poderei esclarecer este mistério?»
Reparou que, na sala de cinema, havia sempre uma ou duas filas vazias na plateia sensivelmente a meio e a seguir a essas, para a frente, estavam sempre os lugares ocupados por rapaziada de Ourém.
«Há aqui algo esquisito. Não que me importe que eles vejam o filme à borla, havendo lugares vazios, mas gostava de esclarecer isto.»
E resolveu preparar uma partida, combinando com o Mário:
- Numa próxima sessão, se chegar algum espetador mais tardio, vende-lhe bilhete para a fila L.
Esta fila era a que era geralmente ocupada por Estorietas e companhia.
Um dos filmes que teve grande êxito em Ourém foi «Os dez mandamentos» de Cecil B. de Mill. A história de Moisés, salvo das águas, crescendo ao lado do imperador, encantava as meninas de Ourém. E realizaram-se várias sessões do filme.
Durante várias vezes, Estorietas e amigos permaneceram junto à porta à espera da borla, mas, com a lotação esgotada, a sua entrada era impossível. Até que numa das sessões derradeiras, o Joia abriu a porta e disse:
- Entrem agora. Vá, não façam barulho, não se tornem notados…
Como por encanto, a fila L ficou quase cheia, ocupando o Estorietas logo o lugar da coxia central. E ali estava ele, com a restante miudagem, a ver o Pernalonga e companhia, a assistir a apresentação do trailer do filme seguinte e a alguns documentários sobre o mundo português. O cinema estava muito composto, quase todos os lugares tinham sido vendidos.
Pouco faltava para se dar início ao filme da noite. O Estorietas sentiu uns passos na sua direção e que alguém parou a seu lado. Nesse momento, ouviu aquela vozinha:
- O senhor está no meu lugar…
Levantou a cabeça. Era ela. Tinha de ser ela, a Cietezinha e restante família, um batalhão com quatro ou cinco pessoas com bilhetes para o lugar que ele e os amigos ocupavam. Ficou sem saber o que fazer, um pouco atrapalhado, mas, como havia quatro ou cinco lugares disponíveis na fila, um ligeiro shift permitiu que todos assistissem ao espetáculo.
Ali ficou ele sentado ao lado daquela linda rapariga, a sua eterna rival, sentindo a sua respiração suave, mas com um estatuto desconfortável: estava ali ilegal, sem bilhete, prestes a passar por uma vergonha, enquanto ela, altaneira, arrogante, assistia impávida e serena ao filme. Que gozo iria ser no CFL. Nem teve concentração para ver o filme…
Mas as desgraças não se ficaram por aí…
O problema é que o Melo tinha assistido a tudo e, no intervalo, veio ter com eles acompanhado de um polícia.
- Mostrem-me os vossos bilhetes…
Foi aflição total. Nenhum daqueles miúdos tinha bilhete e o passo seguinte foi irem todos para a polícia com o objetivo de esclarecer a situação…


E agora, meus amigos? Será que, por culpa da Cietezinha, o Estorietas e os amigos ficam presos?

segunda-feira, abril 13, 2020

Uma joia de pessoa

Em Ourém as sessões cinematográficas ocorriam à quinta-feira e ao domingo. O Melo era o grande entusiasta da divulgação cinematográfica e cumpria com entusiasmo esse seu hobby muitas vezes suportando os prejuízos quando as assistências escasseavam. Acompanhavam-no o Mário na bilheteira e o Joia como porteiro.
Um dia, o Estorietas passava junto ao velho cinema. Exibia-se o filme «Rio Bravo», um clássico do Western, um filme que ele gostaria de ver. Reparou que, à porta do cinema, estavam vários miúdos da sua idade: o Luís Nuno, o Zé Rito, o Natureza. Coisa estranha. Que fariam ali?
Resolveu aproximar-se para investigar.
Não precisou de muito tempo. Poucos minutos depois, a porta abria-se e uma voz dizia:
- Entrem, entrem…
Aproveitou a boleia e, como por encanto, encontrou-se na sala do cinema onde alguns lugares vazios convidavam a sentar-se.
O Joia sorridente, mais parecendo um chefe de escuteiros, dizia:
- Sentem-se naquela fila que não tem ninguém. Já ninguém deve vir ocupar aqueles lugares.
Agachados, ocuparam os lugares indicados pelo porteiro. Pouco depois, estavam completamente embevecidos a assistir ao desenrolar da projeção…
O Estorietas estava entusiasmado e, quando chegou a casa, justificou a chegada tardia com uma ida ao cinema.
- E quanto gastaste? – perguntou a mãe.
- Nada. O Joia deixou-nos entrar.
Claro que, a partir daquele dia, o Estorietas começou a frequentar a porta de entrada do cinema e a cena repetiu-se pelo espetáculos seguintes…
Era um coração de oiro aquele Joia.


Mas estariam todos satisfeitos?

sexta-feira, abril 10, 2020

Nunca leves a sério um filme policial

O comandante do posto não estava muito satisfeito com o modo com as coisas se estavam a processar.
- A PJ não tem autoridade para interrogar elementos da GNR. Recuso…
- Não o aconselharia – respondeu o investigador. – Podem sair daqui como heróis ou vilões, por isso, o vosso interesse é colaborar. Reparem que, se isto for divulgado pela imprensa e der para o torto, a vossa imagem fica definitivamente comprometida. E não acredito que o nosso venerado Presidente permita que continuem neste remansoso espaço. Uma visita às colónias é capaz de vos fazer muito bem.
O comandante dispôs-se a colaborar e, pouco depois, o guarda Ernesto confessava como tudo se tinha passado.
- Quer dizer, esse miúdo, o João, é responsável por todos os prejuízos causados ao senhor Borda d’Água e você colaborou numa manobra de diversão relativamente à recolha da jóia.
- Eu não queria prejudicar ninguém. Pensei que não faria mal uma vez que o objecto acabou por ser recuperado.
- Por favor chamem-me o senhor Borda d’Água e o doutor Preto…
Pouco depois, as pessoas referidas eram postas ao corrente da situação. O Dr. Preto, sempre bondoso afirmou:
- Gostava que este caso fosse abafado. Cobrirei todos os prejuízos causados pelo meu neto e dar-lhe-ei uma lição que ele não esquecerá apesar de já duvidar de que ele um dia se emendará. A próxima dose de vitaminas que tomar será injetada por mim, isto, durante trinta dia. Além disso, dia sim dia não, vou dar-lhe um sedativo em supositório...
O senhor Borda d’Água tossicou e afirmou:
- Eu estou satisfeitíssimo com a recuperação da coroa. A exposição vai continuar e a imagem de eficácia que foi transmitida na recuperação da coroa é que é que é importante. Não se preocupe com os prejuízos, dr. Preto. O aumento de negócios compensou tudo e o café Avenida já se prontificou a prolongar a exposição mais uns dias. Por isso, sinto-me totalmente compensado.
- Então, no meu relatório, vou afirmar que um desconhecido anónimo aqui deixou a indicação da localização da coroa. Mas, comandante, como foi tão ingénuo para acreditar na versão que o guarda Ernesto lhe contou?
- Isto acontece tantas vezes nos filmes policiais que acabei por pensar que era verdade…


FIM


quinta-feira, abril 09, 2020

O aparecimento da coroa

Pela manhã do oitavo dia, começou a notar-se algum movimento no posto da GNR. O guarda Ernesto, o comandante e outro guarda tomaram lugar num jeep e partiram rapidamente na direção da Rua de Castela.
Pouco depois, chegaram junto ao cemitério e desencadearam uma busca sistemática. E não foi preciso muito tempo.
- Está aqui, comandante. Está aqui – gritou o guarda Ernesto.
O comandante abriu avidamente o saco e, lá de dentro, resplandecente, surgiu a coroa de ouro.
- Encontrámos. Nós encontrámos a coroa de ouro. Vamos ao posto elaborar o auto da descoberta e, só depois, avisaremos aqueles nabos que ainda andam à procura de vestígios no Avenida.
Assim fizeram. Voltaram ao posto, redigiram um auto que o comandante fez assinar pelos dois guardas que o acompanharam e, de seguida, este deu uma ordem:
- Guarda Ernesto, faça uma cópia deste auto e vá ao café Avenida entregá-la aos investigadores que lá estão a trabalhar neste processo.
- Às suas ordens, meu comandante. Acha que posso contar com uma promoçãozinha, pois fui eu que recebi o bilhete que deslindava tudo?
- Com certeza, meu caro. Nós vamos ficar famosos…
Pouco depois, compareciam no posto os investigadores da PJ e o senhor Borda d’Água que continuava a evidenciar grande nervosismo. O comandante trouxe o saco e entregou-o ao ourives:
- Aqui tem, meu caro senhor. Era este o objecto desaparecido?
O pai da Leninha abriu o saco com sofreguidão e retirou de lá a coroa. Quase chorava quando a viu.
- Era este mesmo, senhor comandante. Nem sabe o alívio que me provocou esta ação da GNR.
- É para isso que aqui estamos: sempre para servir o povo trabalhador.
O senhor Borda d’Água virou-se então para os elementos da PJ.
- Acho que podemos dar por concluído este processo.
Mas os investigadores não pareciam muito satisfeitos com o desenrolar da situação.
- Um momento. Estes senhores – e apontou o comandante da GNR e os dois guardas – ainda não esclareceram como descobriram o sítio onde a coroa apareceu. Ninguém rouba uma coroa para depois vir dizer à GNR onde ela está. Temos de investigar qual o verdadeiro papel que todos tiveram neste caso…

quarta-feira, abril 08, 2020

Encenação da devolução

Passaram mais dois dias sem qualquer avanço nas investigações. O senhor Borda d’Água andava de cabeça perdida a pensar em como poderia compensar o Tesouro Português por causa do património perdido pelo qual era responsável. A Leninha passava o dia a chorar e até faltou a algumas aulas no CFL. A exposição estava cancelada, não havia negócio que resistisse.
Na tarde do sétimo dia, o João foi falar com o guarda Ernesto da GNR com quem desenvolvera alguma amizade depois dos dois dias de reclusão que lá tinha vivido. Expôs-lhe uma situação estranha que o guarda ouviu com a maior atenção.
Passando casualmente cá fora, o Estorietas só ouviu:
- Faz isso, João. Verás que tudo fica resolvido.
O Estorietas ficou intrigado, mas rapidamente deixou de pensar no assunto. Entretanto, nessa noite, o João saiu de casa com um saco negro onde levava qualquer coisa e dirigiu-se às imediações do cemitério. Junto à terceira árvore mais à direita deixou ficar o estranho volume e voltou para casa. Ao passar junto ao posto da GNR, tapou a cara, chamou um preso e disse-lhe:
- Por favor, entrega este bilhete ao guarda Ernesto. Ele sabe do que se passa. Não contes isto a ninguém…
Pouco depois, regressava a casa e foi deitar-se mais satisfeito. Quase sorria.
«Talvez amanhã a Leninha possa ficar mais descansada. E eu fico aliviado. Estúpida brincadeira esta em que me meti…»
Apesar de tudo, não dormiu muito bem. Será que as coisas iam decorrer de acordo com o combinado com o guarda Ernesto? E se o preso lesse o papel e transmitisse o conteúdo a algum cúmplice antes de o entregar ao guarda? A coroa poderia desaparecer definitivamente e o pobre ourives cairia na desgraça.

terça-feira, abril 07, 2020

Início da investigação

Junto ao café Avenida, a confusão era enorme. Um cordão policial tinha sido implantado e ninguém podia entrar no café. Quando a Leninha ali chegou, encontrou o pai que retorcia as mãos em desespero.
- Ai o que me fizeram. Estou desgraçado…
- Tem calma, pai. A culpa foi toda minha. Eu é que vou para a prisão para saldar esta dívida.
Nesse momento, o João chegou junto deles.
- Então que se passa? Tanta confusão…
- Oh! João…
A Leninha ia para dizer qualquer coisa, mas não conseguiu. O rapaz teve de a amparar para não voltar a cair redondamente no chão.
- Vamos, tem calma. Verás que tudo se resolverá em pouco tempo. A polícia já investiga?
- Já chamámos a Judiciária – respondeu o senhor Borda d’Água. – E andam por aí elementos da PIDE, pois há quem pense que isto tem contornos políticos…
- Contornos políticos?... – estranhou o João. – Coisa estranha.
O certo é que o João ficou preocupado com o modo como as coisas se estavam a desenvolver e rapidamente elaborou um plano de ação. Ao mesmo tempo, o seu bom coração impelia-o para libertar a Leninha do mau momento que estava a viver.
«Tenho de fazer alguma coisa. Esta brincadeira está a ir longe demais.»
Nesse momento, um elemento da Judiciária chegou à porta do café e disse.
- Precisamos de falar com o responsável da exposição.
O senhor Borda d’Água avançou e a Leninha acompanhou-o. Lá dentro, sentado a uma mesa, viram o Ezequiel muito cabisbaixo a bater com a mão na cabeça
- A culpa foi minha – dizia ele. – Devo ter-me esquecido de fechar a porta lateral.
- Não pense nisso – respondeu o elemento da PJ e virando-se para o senhor Borda d’Água e filha: - Isto é um caso muito estranho. Apenas foi roubada uma peça que nem sequer é a mais valiosa. O executante refugiou-se na casa de banho, esperou que todos saíssem e o café fechasse para executar o golpe. Já recolhemos impressões digitais por todo o lado e especialmente nesse local, mas ainda não temos suspeitos. Quanto à execução, foi primorosa utilizando um diamante para cortar a proteção em vidro. Dado o tipo de golpe, receio que nunca apareça no mercado de recetadores e que seja para alimentar uma coleção particular. Assim, sem um bocadinho de sorte, nunca descobriremos o verdadeiro culpado.
- Oh! Meu Deus! Que coisa horrível! E era eu o fiel depositário dessas joias…
- Prepare-se para o pior.
A Leninha desatou num choro convulsivo e saiu do café. Cá fora, o João amparou-a mais uma vez e ela contou-lhe o desenrolar da conversa com o elemento da PJ.
O João ficou preocupadíssimo e, enquanto regressava a casa, cogitava.
«Tenho de fazer alguma coisa».

segunda-feira, abril 06, 2020

Uma terrível notícia

Naquela manhã, a Leninha sentia-se bastante feliz. A sua sugestão relativamente à conferência parecia estar a resultar. As vendas da ourivesaria subiam exponencialmente, o pai andava excitadíssimo a contar o dinheiro e a depositá-lo no Banco.
Logo pela manhã chegou ao CFL e entrou na aula de História exibindo um ar bastante feliz. Quando a aula começou, o Dr. Armando não deixou de referir a exposição:
- Espero que já todos tenham visitado a exposição sobre as jóias da realeza que tem lugar no café Avenida. Ela acontece por sugestão da vossa colega Helena e era bom que outros alunos tivessem ideias semelhantes para dinamizar a economia e a aquisição de conhecimentos. Já ouve muitas visitas, Leninha?
- Ontem, foram contabilizadas mais 1300 pessoas. Grande parte delas não era de Ourém.
- É formidável o impacto que uma coisa dessas pode ter na nossa sociedade, neste meio empobrecido e, por vezes, tão sonolento.
A Leninha estava felicissima com o elogio implícito nas palavras daquele magnífico professor. Sentada ao lado da Ciete, olhava de lado para ela que, naquele dia, não era a personagem principal na aula.
Entretanto alguém bateu à porta. O Dr. Armando parou a sua exposição e disse com voz forte, um tanto irritada:
- Entre.
Era o senhor Nunes com uma expressão muito preocupada que, com o seu ar solene, anunciou:
- Alguém roubou a coroa de ouro da rainha Sofia. Está tudo em pânico no café Avenida.
A Leninha sentiu um nó na garganta. Levantou-se rapidamente, levou a mão à boca e só pôde pronunciar:
- Oooohhhhh!!!!!
Logo de seguida, caiu no chão inanimada...

sexta-feira, abril 03, 2020

No escuro da noite...

No final do quinto dia, pela meia-noite, o Ezequiel despediu-se do último cliente:
- Boa noite, senhor Fernando…
- Boa noite, Ezequiel. Até amanhã.
Iniciou então a sua rotina diária de fecho: desligar as máquinas, arrumar as cadeiras, desligar a televisão, guardar o dinheiro da receita no cofre…
Deitou uma pequena olhadela ao local da exposição.
«Tudo em ordem…»
Desligou as luzes e encaminhou-se para a porta rotativa. Desfez a porta, passou para o exterior e trancou-a. Depois, calmamente encaminhou-se para casa.
Lá dentro, a escuridão dominava. Um silêncio avassalador tinha tomado conta daquele espaço tão vivo durante o dia.
Imaginem um café vazio, abandonado, todo em escuridão, no meio do silêncio…
Mas, de repente, algo aconteceu…
A porta da casa de banho dos homens abriu-se e, lá de dentro, saiu a figura de um indivíduo todo vestido de negro. Rapidamente, encaminhou-se para os escaparates. Frente àquele que continha a coroa da rainha Dona Sofia, sacou de algo cortante, talvez um diamante, e, com a maior das facilidades, cortou o vidro. Retirou a coroa e colocou-a num saco que atou à cintura.
Em seguida, dirigiu-se a uma parede junto à máquina de café e retirou daí um molho de chaves. Com toda a destreza, dirigiu-se à porta lateral junto ao bilhar. Fez rodar a fechadura, abriu-a com todo o cuidado, olhou para um e outro lado para ver se havia alguém e, tranquilo, desceu os poucos degraus que o separavam da rua e encaminhou-se descontraidamente para a Avenida. Atravessou-a e dirigiu-se na direção da casa do Manel Raul.

Quem seria o misterioso assaltante?

(Continua na próxima segunda-feira)

quinta-feira, abril 02, 2020

Uma época gloriosa da Joalharia Portuguesa

O século XVIII foi uma época gloriosa para a Joalharia Portuguesa devido à descoberta de ouro e posteriormente, de diamantes no Brasil que veio marcar todas as nossas artes com relevo para a Joalharia.
As tendências dominantes dos séculos anteriores traduziam-se no sentimento religioso, na utilização de esmaltes e coloridas enquanto, que este novo período, deu lugar a joias mais uniformes na sua decoração e design, realçando o brilho e a cor de uma única gema.
Nesta época gloriosa, emergiu a chamada "joia-espetáculo", que fazia transparecer publicamente a posse de riqueza e de poder ou crença religiosa.
Em Portugal, pode-se comprovar tal facto pela profusa exibição de Insígnias das Ordens Militares pelos seus membros.
Alguns grandes senhores possuíam riquíssimas obras de joalharia em diamantes e rubis (Insígnias das ordens de Cristo ou de Santiago) e esmeraldas (Insígnias da ordem de Avis).
Até à data, a lapidação mais apreciada era em "rosa" que constava de várias facetas na superfície visível superior da gema.
Na lapidação em "brilhante" desenvolvida e aperfeiçoada em Veneza, no início do século XVIII, as facetas são dispostas de modo geométrico, de maneira a que a luz aumente o brilho, a cor e o fogo do diamante.
Nesta época, a grande tendência barroca motivou o desenvolvimento da nova lapidação e era considerado mais hábil o ourives que tivesse a capacidade de tornar os suportes para as gemas.
Técnica facilitada com o aparecimento dos diamantes do Brasil, mais fundos que os provenientes da Índia, logo mais adaptáveis às exigências do novo talhe.
A prata era o metal de eleição para estas montagens, já que quando bem polida confundia-se com o brilho dos diamantes.
Foi a partir da segunda metade do século XVIII, que os diamantes brilhantes começaram a ser apreciados, simultaneamente, com o auge das encomendas aos joalheiros e ourives de Paris pela Casa Real Portuguesa.
Na grandiosa "Custódia de Ouro do Cabido da Sé de Lisboa" realizada entre 1755 e 1760, encontramos, entre outras gemas, grandes diamantes lapidados em rosa, facto que permite duvidar de uma utilização significativa, na joalharia nacional, de diamantes lapidados em brilhante anteriores a esta década.
Não são apenas os diamantes e as gemas “tradicionais" como as esmeraldas, rubis, pérolas e as safiras, as pedras utilizadas na Joalharia Portuguesa setecentista. As gemas de baixo valor aquisitivo também foram utilizadas em grande quantidade de joias de modo a ilustrar e preenchê-las de valor decorativo.
Na Joalharia Portuguesa eram utilizados como substitutos de diamantes os topázios, as crisólitas, os citrinos e cristais-de-rocha lapidado em brilhante e forrado de folhas prateados que atualmente, se designa, de modo geral, como "minas- novas".
Pedrarias estas que se encontravam com facilidade no Brasil, sendo o cristal de rocha (quartzo incolor cristalizado) também comum no nosso país.
Os ourives e joalheiros do século XVIII inspiravam-se na fonte naturalista, tal acontecia tanto em Portugal como na Europa.
As joias mais produzidas nesta época eram em forma de flores, estilizadas ou retratadas identicamente conforme os originais que refletiam os jardins barrocos transformando as joias em pequenos e preciosos jardins.
As populares laças em ouro não deixaram de ser influenciadas por este longo naturalismo que chegou aos alvores do século XX.
Durante este período objetos como brincos, alfinetes, anéis), braceletes, vários adornos para os cabelos atingiram um elevado grau de esplendor e apenas no final do século surgiu a tiara.
O último período de esplendor da joalharia ocidental ficou denominado pela elegância das joias dos homens, nomeadamente, alfinetes de chapéus, relógios com correntes, fivelas para mantos e sapatos, botões e insígnias.
Pode dizer-se que este foi o último período de esplendor da joalharia masculina no ocidente.
Na segunda metade do século, destacava-se o laço com pendente, em ouro ou prata encrustado com que podia ser utilizado em roupas, brincos ou pendente no centro do colar.
A ourivesaria portuguesa foi durante o período barroco até movimentos do século XIX influenciado pela produção de ouro do Brasil.
Hoje, são poucas as joias da Família Real ou de alta aristocracia que sobreviveram a esta época, salvo as representadas em pinturas e desenhos, ou registadas em documentação. Contudo, o conjunto do Palácio da Ajuda conhecido por "Joias da Coroa", reunido já durante o Estado Novo, possui algumas peças dos finais do século XVIII, algumas extraordinariamente importantes.
É o caso da grande laça para peitilho para esmeraldas e diamantes lapidados em brilhante, obra executada na transcrição dos reinados de D. José para D. Maria I.
Porém, novas modas e dificuldades económicas obrigaram a transformações das joias ou à sua destruição. Em 1845 ainda se conservava na Casa da Moeda de Lisboa, proveniente da antiga Igreja Patriarcal, o Ceptro em ouro de D. João I que, entre tantas outras preciosidades, acabou por ser fundido para enriquecer os cofres do Estado.
Nos cadinhos da Casa da Moeda) foi igualmente destruído o valioso tesouro das joias da imagem da Nossa Senhora do Carmo, entre as quais duas coroas em ouro e com grandes pedrarias oferecidas por D. João V.
Um dos testemunhos mais vibrantes da joalharia da Corte nos meados do século é uma obra sacra, a chamada "Custódia da Bemposta". Esta custódia, que se encontra no Museu Nacional de Arte Antiga, foi realizada na década de 60, provavelmente segundo um desenho do arquiteto/ourives de D. João I, João Frederico Ludovice.
A sua decoração, com aplicação de inúmeras pedras preciosas, baseou-se na grande joalharia da Corte. Deste modo, encontramos grinaldas em pedras de cor; laços em diamantes e rubis; ou pequenas flores em pedraria recordando o trabalho de caixas de rapé em ouro, tão apreciadas na época.
No decorrer dos setecentos, evidenciou-se a oficina dos Pollet, joalheiros de origem polaca que serviram sobretudo D. Maria I. Adão Gotlieb Pollet, "cravador da Corte", desde 1779, foi o autor de algumas das magníficas obras que esta rainha possuiu.
De sua autoria apenas se conhece hoje um belíssimo alfinete com uma safira de 100 quilates, rodeada de diamantes brilhantes, guardada no Palácio Nacional da Ajuda. O seu filho David Ambrosio Pollet conservou a régia clientela de seu pai após a sua morte. Uma das suas encomendas foi a das joias oferecidas por ocasião do casamento dos Príncipes D. João e D. Carlota Joaquina.
No Palácio Nacional da Ajuda conservam-se algumas joias de grande valor executadas por este ourives. Destas destacam- se a " Placa Insígnia das Três Ordens" e o grande "Tosão de Ouro", todas executadas em 1789. Este último, uma das insígnias mais grandiosas em toda a Europa, já anuncia o neoclassicismo.
É curioso salientar que foram as joias de carácter mais popular que sobreviveram ao século dos "diamantes", obras executadas para a pequena e média fidalguia, ou para abastados burgueses.
As joias mais difundidas na segunda metade do século são, sem dúvida, as "laças", apresentando-se como o próprio nome indica, com a forma de um laço a que se acrescentou um pendente.
 As "laças", em prata ou ouro, enriquecidas em alguns casos por pequenos diamantes, tanto podem ser alfinetes, como brincos ou como pendentes no centro de um colar.
O laço como desenho da joia é tipicamente europeu para todo o século XVIII, se bem que em Portugal tenha um tratamento próprio, facilmente distinguível.
Este motivo serviu simultaneamente na produção de joias em "minas novas", o mais famoso substituto entre nós, ou em outras pedras de cor.
Um outro tipo de pendente, que se designa tradicionalmente de "Sequilé", apresenta uma forma de losango ao alto dividido em duas secções. O "Sequilé", se bem que a origem do seu nome seja francesa, sugere uma forte inspiração da joalharia popular espanhola na sua conceção.
As filigranas, produzidas na região de Gondomar e em pequenas oficinas familiares de trabalhadores rurais simultaneamente ourives, são muito apreciadas. As formas obtidas pela junção de estreitos fios de ouro são esplêndidas manifestações do barroco popular.
Mesmo não se conhecendo exemplares de grandes joias  do mundo barroco e rococó em Portugal, com exceção do núcleo da Ajuda, a profusa produção de joias com ou sem "minas-novas" ou pedras de cor, revela-nos um mundo tão espetacular e exibicionista que, estimulado pela imaginação, tanto tem a ver com o modo de ser português.
Conforme mencionado, objetos de adorno e de culto religioso em ouro e pedras preciosas tiveram grande destaque a partir do século XVIII, objetos sagrados tais como âmbulas, anéis, episcopais, cálices, chaves de sacrário, cruzes peitorais e ostensórios são objetos simbólicos pertencentes às classes de distinção, hierarquia e clero.







Nota: este texto foi adaptado a partir de um texto da New Greenfil com o título «Joalharia portuguesa do século XVIII».


quarta-feira, abril 01, 2020

Uma exposição destinada ao sucesso

No dia marcado para o início da exposição, o Café Avenida apareceu bastante modificado. A zona de refeições era ocupada por um conjunto de escaparates vidrados no interior dos quais era possível observar as diferentes peças artísticas. Algo de fabuloso: coroas das nossas rainhas, sabres de ouro, jóias de toda a forma e espécie. Mesmo à frente e para o lado direito, um pequeno balcão onde o senhor Borda d’Águas apresentava algum material destinado a ser vendido.  A zona de refeições tinha transitado para a zona perto da porta rotativa e as outras mesas estavam disponíveis para os clientes da bica e outras bebidas.
Pelas onze horas, o café estava totalmente cheio e o Dr. Armando iniciou a primeira conferência, fazendo uma completa descrição das jóias expostas e contando alguns factos históricos associados às mesmas. No final, foi vibrantemente aplaudido e as pessoas puderam circular por entre os escaparates. Todos ficaram encantados.
O João murmurava:
- Que maravilha! Como é possível todas estas coisas estarem escondidas.
A seu lado, o Estorietas desvalorizava:
- Coroas para rainhas inúteis e opressoras. Jóias para as damas aristocratas chocalharem…
E o Kansas:
- … com um bocado de pólvora limpava isto tudo.
Entretanto o senhor Borda d’Água ia fazendo negócio no seu pequeno balcão. Se algum potencial cliente procurava algo que no momento não tivesse, indicava-lhe a sua loja de ourives como ponto obrigatório de visita.
«Isto parece correr bem. A Leninha tem grandes ideias, podia dedicar-se à ourivesaria em vez de se dedicar a empresas imobiliárias. Que desperdício…».
E os dias foram passando tudo indicando que a exposição era um sucesso inigualável em termos culturais e em termos financeiros.


Mas nem todos estavam contentes com o sucesso da exposição. Amanhã não deixe de ler a notável descrição de joalharia efetuada pelo Dr. Armando. Mas, por trás desta gente ingénua, alguém se movimentava para criar problemas. Quem seria? Não deixe de ler os próximos capítulos...

terça-feira, março 31, 2020

Fora com os parasitas

Daí a alguns dias, alguns jornais davam a notícia:


GRANDE EXPOSIÇÃO DAS JOIAS DA REALEZA
Em Vila Nova de Ourém vai ter lugar uma grande exposição de joias levada a cabo pelo seu fiel depositário, o ourives senhor Borda d’Água. O evento terá lugar no espaço de restaurante do Café Avenida e contará com a participação do diretor do Colégio Fernão Lopes como conferencista.


Mas não eram só notícias que os jornais traziam. Alguns lançavam uma farpa: «O leitor acha bem que as joias, que são um património coletivo, sejam expostas num café por mais prestigiado que este seja?».
Na vila, o assunto foi muito comentado. Em simultâneo, o espaço começou a ser preparado e os primeiros a sentirem as consequências foram os habituais jogadores de cartas.
Um dia, o Ezequiel chegou junto do Estorietas, do João, do Kansas e do Jó e afirmou:
- Meus amigos, têm de procurar outro espaço para os vossos jogos. Vamos ter uma exposição no café e estas mesas vão ficar reservadas para o serviço de refeições.
- Vou já pedir o livro de reclamações – refilou o João.
- Não faça isso – respondeu o Ezequiel. – Olhe que o menino não tem idade para jogar às cartas no café. Temos sido muito condescendentes…
E tiveram de aceitar a imposição. Pouco a pouco, os habituais clientes foram-se habituando à ideia de que algo de diferente se iria passar ali.

Mas alguém não tinha gostado da ideia de ser corrido das mesas de jogo do café. Quem? O terrível João Passarinho que imediatamente começou a forjar um plano para estragar o negócio àquelas almas tão ingénuas.

segunda-feira, março 30, 2020

Uma exposição original

Em casa da Leninha, o ambiente era um bocado pesado. O senhor Borda d’Água manifestava algumas preocupações sobre o andamento do negócio de ourives.
- Isto está a ficar muito mau. Pouco se vende… qualquer dia, nem dinheiro tenho para pagar a mensalidade do colégio. Tenho falado com todos os comerciantes da nossa rua, o senhor Godinho da tipografia, o senhor Paisana e as vendas deles são mais ou menos normais. Não percebo o que se passa.
A miúda ficou extremamente preocupada. Como podia deixar aquele espaço? Abandonar os seus amigos que conhecia há tantos anos?
- Paizinho, tens de fazer alguma coisa. E pode ser que seja uma conjuntura pouco propícia para o teu negócio.
- Aquilo precisa de uma dinamização qualquer. Mas não sei o quê…
O senhor Borda d’Água era depositário de alguns objetos importantes da nossa realeza e a Leninha logo pensou em tirar algum partido da situação.
- Por que não fazes uma exposição das jóias? Talvez isso atraísse novos compradores.
- Já me lembrei disso. Mas onde fazer a exposição? Há dias falei com o Bragança e ele afastou a ideia de a fazer nalgum espaço da vila medieval, dizendo que era pouco seguro.
- E já falaste com o Dr. Armando? Poderias dar à exposição um cunho cultural, histórico… Ele próprio podia fazer alguma intervenção ao vivo. É tão cativante quando fala em História.
- Boa ideia. Amanhã, vou já tratar disso.
No dia seguinte, no CFL, a Leninha viu o seu pai a entrar no gabinete do Diretor. Estiveram a conversar pouco mais de uma hora e, nessa altura, saíram e entraram no carro do Dr. Armando tendo-se dirigido para o centro da vila.
Que se passaria? Se o professor se tivesse recusado, com certeza não sairiam dali os dois juntos. A curiosidade fez com que não desse mais atenção às aulas do dia, ela só pensava naquilo que propusera ao pai.
À noite, o pai deu-lhe a novidade.
- Olha, a exposição vai realizar-se dentro de quinze dias no restaurante do Café Avenida. O café não terá grandes prejuízos pois é muito limitado o número de almoços que serve e pode mobilizar a zona dos jogadores de king para servir algumas refeições. É sem dúvida o local mais nobre para receber as jóias da coroa, uma verdadeira Vila Galé da nossa terra. Durará duas semanas e o Dr. Armando dará duas conferências. Vamos já tratar de publicitar o evento.

sexta-feira, março 27, 2020

O fim de um sonho

Quando acordou, viu que estava sentada numa cadeira e que alguém fazia movimentos com um abano para a refrescar.
- Sente-se melhor? – perguntou um dos coordenadores.
- Eu estou bem, não percebo o que se passou.
- Já expulsámos os outros dois atores. Decididamente, não serviam ou eram realistas demais. Lamento, mas vamos ter de ir embora e prescindir dos seus serviços. Aproveitaremos, no entanto, as suas fotografias e pagaremos o seu esforço.
- Mas que se passou. Por que chegaram eles àquele ponto?
- Vou-lhe mostrar o argumento para a cena que eles estavam a protagonizar – e entregou-lhe uma pequena folha retirada de uma revista de banda desenhada. – Trata-se de uma passagem do álbum «Arizona Love» da autoria de Giraud. Nós sentíamos que podíamos recriá-la aqui, mas a infantilidade dos outros dois atores estragou tudo. Agora vamos para outra terra testar outros candidatos.
- E eu não sirvo?
- Pretendemos centralizar numa localidade todas as cenas. Para isso, criámos todos estes cenários em que foi fotografada e em que decorreram estes trabalhos. Receio que, noutro local, não lhe dê muito jeito.
- Mas eu posso ir de camioneta…
- Nem pense. Ainda anda a estudar, não pode faltar às aulas…
Nesse momento, ouviu-se uma travagem brusca junto à banda. De dentro de um Peugeot 304 saiu a figura enorme do Dr. Armando. Mas não só…
Pela outra porta, saiu o sr. Bragança, muito direito, com ar de poucos amigos.
- Explica-me lá minha filha, porque faltaste às aulas estas duas tardes…
E assim se frustraram os sonhos da Cietezinha de vir a ser uma grande actriz de fotonovelas.



FIM 

(por enquanto...)

quinta-feira, março 26, 2020

Um argumento perigoso

A Cietezinha passou com sucesso por todas as provas. Ela pôs a mesa na senhorial casa com toda a classe. Limpou o quarto do Estorietas, fez a caminha, sempre com o homem da máquina fotográfica a registar a sua ação. Faltava uma prova para a decisão final…
- Estamos muito contentes consigo – disse um dos coordenadores. – Vamos fazer uma última prova para determinar se usamos as suas fotos e avançamos para um projeto mais elaborado. É importante que comece a manifestar os sinais de uma paixão avassaladora para com o galã e hoje vai ser submetida a uma prova crucial: vai encontrá-lo numa gruta com outra mulher. O argumento é o seguinte: é preciso levar alimentos ao nosso herói que está refugiado numa gruta, pois é perseguido pelos homens de uma comunidade minoritária. Uma mulher dessa comunidade apaixonou-se loucamente por ele. Tem ali uma cesta com os alimentos, pegue nela e caminhe lentamente para a gruta, espreite lá para dentro para ver se pode entrar e, em caso afirmativo, entregue os alimentos ao herói. Sorria, transmita calor ao encontro e, à saída, mantenha a sua mão entre as dele mais do que o normal.
Ela começou a não gostar muito da conversa já que não estava preparada para um encontro romântico, mas pegou na cesta e aproximou-se da gruta enquanto o fotógrafo ia registando os seus passos.
Olhou para o interior da gruta e, de repente, soltou um grito, levou a mão ao peito e caiu redonda no chão.
Que se passaria?
Um dos coordenadores olhou para o interior da gruta e começou a gritar como um louco:
- Parem, parem, dominem-se, não é local para essas coisas…
Efetivamente, no interior da gruta, o Estorietas e a Deolinda consumavam um amor frenético. O ambiente era avassalador. A jovem não tinha resistido a uma paixão louca suscitada pela proximidade de um beijo técnico e todo o ambiente do salão da banda parecia anunciar que algo ia acontecer.
E, de repente, a gruta explodiu.

quarta-feira, março 25, 2020

Uma prova bem sucedida

Na tarde do dia seguinte, à hora marcada, a Cietezinha estava no salão da banda. Viu sair um trio mais ou menos entusiasmado e que, na entrada, estavam o Estorietas e a Deolinda, uma rapariga loira, escultural que vivia em Caxarias. Pouco depois, este estranho grupo era mandado entrar.
O salão da banda estava dividido em vários módulos: à esquerda encontrava-se uma construção em cartão que fazia lembrar um curral de porcos; atrás do mesmo lado, uma espécie de gruta bastante iluminada no interior; mais para a direita e atrás deles, um quarto mobilado também com uma parede de cartão a separá-lo do restante; à frente, à direita uma mesa de refeições com pesadas cadeiras e servida por uma cristaleira bem preenchida.
- Nós estivemos a analisar o vosso perfil e pensamos que poderão participar na nossa fotonovela. Agora precisamos de os ver em ação. A menina Ciete poderá ter um excelente papel como serviçal, a Deolinda pode ser a rapariga meio selvagem que persegue o herói e, claro, este poderá ser o nosso amigo Estorietas. Temos connosco o nosso fotógrafo exclusivo que vos vai acompanhar em algumas ações de treino. Menina Ciete, pegue nesse balde de água que já tem detergente e na esfregona e vá limpar o curral dos porcos.
A Cietezinha engoliu em seco. Nunca esperaria um papel daqueles, mas, uma vez que estava empenhada em conquistar o lugar, obedeceu e iniciou o cumprimento da missão que lhe cabia. Enquanto o fazia, sentia o fotógrafo a seguir todos os seus movimentos e a fazer fotografias. Devia ser um artista tal a rapidez com que cumpria a sua missão.
«Que horror! – pensava ela. – Quando os meus amigos e amigas me virem na Crónica. Eu, uma miúda tão giraça, a limpar um curral de porcos…».
Viu que o curral nem estava muito sujo. Lá dentro, protegido por uma plataforma de papel, estava um porquito que olhava para ela cheio de medo.
«Coitadinho! É tão bonito! Só me apetece dar-lhe beijinhos».
E que cena comovedora se deu então. A Ciete pegou no porquinho ao colo e este encostou a carinha à dela, parecendo dar-lhe um beijinho. O fotógrafo tudo registou.
Ela em breve se arrependeu do acto. Mas, ainda não tinha posto o porquito no chão, já se ouviam os aplausos dos jurados.
- Bravo! Bravo! Que cena comovedora! Nunca nada de tão belo se passou nas nossas fotonovelas. Está contratada…

terça-feira, março 24, 2020

Um papel estranho

Os dias foram passando até que, numa manhã soalheira, uma carta chegou, uma carta dirigida à Cietezinha com o logo da APR.
«A Crónica Feminina agradece a sua disponibilidade para a participação nas suas fotonovelas e solicita que se apresente no salão da banda em Vila Nova de Ourém na tarde da próxima quarta-feira pelas 14 horas».
O coração da Ciete ficou em alta aceleração e engendrou logo um plano para faltar às aulas e comparecer à entrevista.
Chegada à banda, estranhou ver uma fila enorme de rapazes e raparigas de Ourém todos aparentemente com a mesma finalidade. E aquilo que lhe parecera uma tarde de gozo converteu-se numa monumental seca. Havia uns dez à sua frente e notou que cada um demorava pelo menos uns vinte minutos na entrevista. Alguns saiam com um papel nas mãos e entretinham-se a lê-lo enquanto se afastavam.
A certa altura viu passar o seu colega Estorietas também com uns papéis na mão e resolveu perguntar-lhe o que estava ali a fazer.
- Olha, vim a um casting para uma fotonovela de aventuras. O anúncio apareceu no Mundo de Aventuras. Agora, levo aqui um argumento para ler e tentar deixar-me fotografar de acordo com ele. Volto cá amanhã. É giro que também entra aqui uma menina para contracenar comigo…
Contracenar com o Estorietas…
A ideia até não lhe desagradava de todo, mas sempre podiam escolher um galã mais jeitoso. Aquele era muito sisudo, tristonho e olhava-a de um modo estranho.
Daí a pouco viu sair a Mari’mília e ficou intrigada.
- Então também vieste a este casting?
- É verdade, respondi a um anúncio da Crónica. Sempre podia ganhar uns dinheiritos.
- E qual vai ser o teu papel?
Ela sorriu tristemente e deixou que uma lágrima furtiva lhe aparecesse nos olhos.
- Nenhum. Fui excluída. Queria ser a noiva do galã, interagir com o Estorietas ou outro dos rapazes, mas não gostaram de mim…
E foi-se. Cada vez mais curiosa, esperou a sua vez e, algum tempo depois, estava em frente de três jurados que lhe entregaram um papel para as mãos.
- Pegue nesse balde e nessa esfregona e caminhe até àquela janela…
Ela obedeceu.
- Agora, olhe para o exterior e ponha um ar sonhador, um ar romântico.
A Cietezinha pôs o melhor ar que podia pôr de acordo com as instruções e as pessoas pareceram ficar satisfeitas. Pediram-lhe os elementos de identificação e que regressasse na tarde do dia seguinte pelas 15 horas.
- Agradecemos que leia este argumento. É o caso de uma menina que é serviçal na casa de um casal brasonado e o tratamento a que é sujeita não é o melhor. Eles têm um filho simpático, e ela vive na eterna nostalgia de conseguir chegar ao maravilhoso mundo dos ricos. Começa a olhar para o rapaz como uma possibilidade de abandonar o seu mundo de trabalho, mas ele mete-se numa aventura terrível e tem de refugiar-se numa gruta para escapar à perseguição de uma rapariga meio selvagem. Os pais usam essa menina, a serviçal, para lhe fazer chegar mantimentos e os breves contactos de um momento para o outro transformam-se numa grande paixão.
- Mas… mas… o que é que eu tenho de fazer?
- Ainda não sabemos, estamos a avaliar o perfil das candidatas. Segundo nos disse, vive num palácio na vila medieval, por isso, tem experiência destes ambientes mais sofisticados…
Ela não estava muito convencida. Que papel tão estranho o que lhe poderia caber… rapariga semi-selvagem, serviçal e qualquer delas a perseguir a personagem masculina. E se esta fosse o Estorietas? Que horror… tirar fotografias ao lado daquele gato esfolado que parecia estar sempre com fome.
E a verdade é que, nessa noite, permaneceu acordada pelo menos até às duas da manhã.
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