sábado, maio 16, 2020

De regresso a casa

Quando o carro dos bandidos passou perto da farmácia, o Rui Leitão estava à porta e pareceu reconhecer o carro.
«É curioso. Parece o carro de ontem.»
Chegou à Teófilo Braga e reparou que o carro parava junto ao hospital.
«Não perco nada se telefonar à polícia ou a GNR. Eles sabem o que podem fazer.»
O carro dos bandidos parou frente ao hospital e eles começaram a transportar o cúmplice ferido para o mesmo. Um pouco à frente, perto da casa do Dr. Durão, parou o carro das maninhas que começaram a abrir a porta para retirar o cãozito.
Nesse momento, ele reconheceu os assaltantes da farmácia e, como se sentia protegido, atirou-se a eles, mordendo-os furiosamente.
- Agarrem esse cão – gritava um dos meliantes.
Entretanto, dois jeeps da GNR vinham a toda a velocidade na direção do hospital, mas em sentidos opostos de forma a não deixarem escapatória possível.
O Rui Leitão tinha avisado a Livinha e corriam ambos na direção do hospital.
E todos puderam assistir ao modo como o Ferraunha dominou os assaltantes da farmácia. Eram três, mas o facto de estarem a apoiar o mais ferido e não terem armas fez com que, a breve trecho, estivessem dominados.
- Meu Ferraunha… - gritava a Livinha.
O cãozinho já tinha recuperado a sua doçura e lambeu-lhe a cara. Depois, conduziu-a às maninhas.
- Foi ter a nossa casa muito magoado – explicou a Céu – e vínhamos trazê-lo ao Dr. Durão.
- Nem sabem como estou grata. O Ferraunha é único. Agora, pode voltar a casa para abraçar os seus filhotes...
- Ferraunha? Chama-se Ferraunha? Nós íamos chamar-lhe Tejo, mas pelo que vemos era mais apropriado chamar-lhe Ferra-o-Dente.
- Eu cá gostava mais de Pestaninhas - respondeu a Céuzinha à irmã.
- Não se zanguem - disse a Livinha - Há mais dois cachorrinhos, filhotes do Ferraunha e iguais a ele. Posso oferecer um a cada uma e assim escolhem os nomes à vossa vontade. Terei todo o prazer nisso.
A Céuzinha e a Cietezinha ficaram todas contentes e louvaram o dia em que o Ferraunha tinha desmaiado à porta delas.
Entretanto, os bandidos, já presos pela GNR, teciam ameaças.
- A culpa foi toda desse malvado cão.
- Se fossem honestos, não vos acontecia nada de mal – respondeu a Livinha. – E agora quero saber onde está o que roubaram, pois levaram o meu dinheiro para medicamentos.
- Nós vamos encarregar-nos disso – prometeu o guarda Ernesto – O que tiverem será devolvido aos legítimos donos.





FIM


Nota Final: os cãezinhos da juventude do autor foram o Tejo, o Mondego, o Nero, o Ferraunha e o Faro. O Tejo era supermeigo e há uma foto do autor a lavá-lo. O Mondego era um belo exemplar em castanho escuro. O Nero era velhote, mal disposto, e um dia mordeu a mão do autor (que lhe terá feito?). O Ferraunha era o mais brincalhão. E o Faro era branquinho, superdivertido.



sexta-feira, maio 15, 2020

Novos donos para o Ferraunha

A Ceuzinha e a Ciete recolheram o Ferraunha e trataram-no o melhor possível. O cãozito foi recuperando. De qualquer modo, elas combinaram:
- Pedimos ao pai para nos levar mais cedo para Ourém e passamos pelo Dr. Durão para ele o observar.
No dia seguinte, a excitação era grande lá em casa.
- Eu é que lhe vou dar o nome – dizia a Ceuzinha – Ele tem ar de imperador. Vou chamar-lhe Nero.
- Eu acho que ele tem um ar que me faz lembrar um rio. E se fosse Tejo?
Falaram mais algum tempo sem chegarem a acordo. O pai veio chamá-las para irem para o CFL. Pegaram no Ferraunha com todo o cuidado e puseram-no no carro. Pouco depois, estavam a caminho de Ourém.
Entretanto, o meliante que tinha sido mordido na perna não estava nada bem. Os dentes do cão tinham entrado profundamente na massa muscular e ele não se conseguia mexer. Telefonou por isso aos cúmplices.
- Rapazes, têm de me levar ao hospital de Ourém. Não consigo mexer a perna por causa daquele malvado cão. Um de vocês tem de conduzir o carro.
Apesar de serem uns bandidos, aqueles homens eram solidários entre si. Pouco depois, estavam a caminho do hospital e, curiosamente, após passarem pela Carapita, o carro das maninhas seguia atrás deles. No seu interior, o Ferraunha começava a alegrar-se por estar em tão boa companhia, embora não conseguisse esquecer a sua querida Livinha o que lhe conferia uma certa tristeza. Mas ficou um pouco agitado ao reconhecer o carro à sua frente.

quinta-feira, maio 14, 2020

Fuga audaciosa

Entretanto, dentro do carro, o Ferraunha continuava a esperar uma ocasião para se pirar.
«Não podem perceber que eu estou aqui – pensava – mal abram a parto, zarpo…».
Continuava muito encolhido atrás do banco dianteiro o que lhe provocava uma dor acentuada no local onde tinha sido pontapeado.
«O malvado que me deu o pontapé há de pagá-las. Os meus dentes vão-lhe ficar marcados na barriga da perna».
Pensou na sua dona, a Livinha. Que doçura de pessoa! Que sorte tinha tido ao ser adotado por ela. Comidinha a horas, uma casota e uma caminha especial para as sonecas. Claro que abusavam um pouco ao mandá-lo fazer tantos recados, mas era imperioso pagar os bons cuidados com que o brindavam. Será que algum dia conseguiria voltar para junto dela?
De repente, sentiu que a porta da casa se abria e que alguém se aproximava do carro. Passos de uma só pessoa…
«É agora – pensou».
Mas não. O indivíduo limitou-se a abrir a bagageira e tirar qualquer coisa, voltando depois para casa.
E o tempo foi passando. Desesperadamente… muito lentamente…
O dia começava a escurecer.
«Já não vou ficar hoje na minha caminha. Estes malvados nunca mais abrem a porta do carro».
A certa altura, ouviu a porta da casa abrir-se e uma voz dizer para o interior.
- Foi um bom golpe rapazes. Amanhã, às dez da manhã, encontramo-nos no Central.
O indivíduo vinha sozinho para o carro, decerto para tomar lugar ao volante e dirigir-se a qualquer outro sítio. O cão preparou-se para saltar.
«Já não me levas para mais nenhum sítio hoje, não…».
A porta esquerda dianteira abriu-se e o meliante iniciou o procedimento de entrada. Nisto, sentiu que alguém passava por ele como uma flecha, cravando-lhe com muita força os dentes na perna.
- Ai…
O Ferraunha escapou a toda a velocidade. Num instante percebeu que estava na zona de Santo Amaro, perto do Castelo, onde tantas vezes a Livinha o levava a passear e tomou a direção de Ourém. Ao fim de correr uns dois quilómetros, sentiu que não estava nas melhores condições. As dores do pontapé que tinha levado eram lancinantes…
«Não consigo… não consigo lá chegar…».
Ainda logrou atingir a Carapita. Muito cansado, titubeante, encostou-se à porta de uma casa. E desmaiou. Já não ouviu uma voz muito doce a dizer:
- É um cãozito, parece doente. Vamos recolhê-lo.
Era a Ceuzinha…

quarta-feira, maio 13, 2020

Uma notícia desagradável

O tempo foi passando e, em casa da Livinha, esta começava a preocupar-se.
- Que estranho! Nunca demorou tanto tempo. Que terá acontecido?
Esperou mais um pouco e, como o cão não aparecesse, decidiu ir ver o que se passava. Vestiu rapidamente um casaco, avisou a mãe e partiu na direção da farmácia.
Já na Silva Carvalho, notou que havia algo de estranho no ambiente, uma agitação nada habitual na vila. Ao chegar junto à farmácia, notou que havia um cordão policial e algumas pessoas a ver o que se passava. Viu então o Rui Leitão:
- Que se passou aqui?
- Assaltaram-nos a farmácia. Três indivíduos mascarados – respondeu ele passando a mão pela cabeça, um pouco agitado.
- Tinha enviado cá o meu cão para levar uns medicamentos…
- Sei que eles lhe deram um pontapé e ele fugiu. Mas não o vi mais. Há quem diga que foi no carro com eles.
- O quê?...
E sentiu-se sufocar…
O seu Ferraunha… o seu cãozinho mais amigo de todos os tempos… como iria agora voltar a vê-lo?
Desesperada, ainda olhou para todos os locais da praça procurando vislumbrá-lo e voltou para casa a soluçar. Pobre coração daquela menina que tanto gostava do cãozinho.
Será que o voltaria a ver?

terça-feira, maio 12, 2020

No carro com os bandidos

À porta da farmácia estavam três homens mascarados e armados que não deixavam a menor dúvida relativamente àquilo a que vinham.
O empregado ficou petrificado ainda com o dinheiro na mão. Um dos assaltantes chegou-se a ele com um saco:
- Vamos, põe aqui tudo o que tens em caixa.
O outro assaltante ia roubando medicamentos enquanto o terceiro ficava à porta de arma em punho, ameaçador.
O empregado hesitou.
- Mas este dinheiro é para o cão…
- Qual cão? – e olhou o Ferraunha ameaçador.
O cãozito não gostou da sua expressão e respondeu mostrando os dentes bem desenvolvidos e rosnando:
- GRRRRR!!!!!!!!...
O homem não se conteve. Tentou dar-lhe um pontapé, mas o cão escapou e atirou-se-lhe à mão, mordendo-a.
- Ai! Malvado…
O que estava a roubar os medicamentos conseguiu pontapear furiosamente o cão e este desatou a fugir, passando para o exterior, sem que o que estava armado criasse qualquer obstáculo.
Mas o Ferraunha, escapando daquele horroroso ambiente, não estava satisfeito. Ele tinha de cumprir a sua missão. Por isso, resolveu esperar escondido. Cá fora, viu um carro com a porta vazia. Refugiou-se lá dentro à espera que tudo passasse.
Nem foi preciso mais um minuto. Os assaltantes saíram da farmácia com o produto do roubo e enfiaram-se no mesmo carro onde o Ferraunha já estava escondido atrás do banco dianteiro do lado esquerdo. Percebeu logo que estava metido num grande sarilho pelo que encolheu-se o mais que pôde, tentando não ser visto pelos bandidos.
Pouco depois, o carro arrancava a grande velocidade. Os assaltantes estavam excitados e pareciam satisfeitos.
- Grande colheita! Felizmente, não tinham depositado o dinheiro. Aqui em Ourém são muito descuidados.
O carro andou cerca de um quarto de hora. Nessa altura, abrandou e entrou num caminho estreito que os levou junto de uma casa que parecia abandonada. Os assaltantes saíram do carro e levaram o produto do roubo para a casa. Estavam muito satisfeitos.
Dentro do carro, o Ferraunha analisou a situação. Não podia sair, pois não tinham deixado nenhuma janela aberta. Tinha de esperar pela ocasião propícia…
E refugiou-se o melhor possível para não ser visto por aqueles malvados.


segunda-feira, maio 11, 2020

Meu nome é Ferraunha

O Ferraunha era um cãozito super afável e esperto adotado pela Livinha. Tinha sido ensinado a ir fazer algumas compras aos donos e todos ficavam encantados com a sua eficácia a satisfazer os seus desejos.
Naquela manhã, o sr. Lains levantou-se, deu-lhe a ração matinal e disse-lhe:
- Ferraunha, vai buscar o jornal ao Café Central.
O cãozito partiu em alta velocidade. Subiu aquela que é agora a Rua 25 de Abril, virou à direita na 5 de Outubro e prosseguiu pela Silva Carvalho até chegar à praça dos carros. Pouco depois, entrava no Café Central e pôs-se em pé, apoiando as patitas dianteiras no balcão.
Um cliente pouco amistoso refilou:
- Está aqui um cão. Vou correr com ele.
Mas o sr. Joaquim Espada deteve-o.
- Não faça isso. Sabemos o que ele pretende.
E o brutamontes ficou banzado a ver o dono do café a pôr o jornal na boca do cãozito e este a partir a toda a velocidade de regresso a casa.
- Formidável. Nunca tinha visto uma coisa destas.
- Há muitos animais que são mais espertos que os humanos – replicou o sr. Espada, olhando significativamente para o cliente.
O homem não percebeu e abandonou o café.
Entretanto, o Ferraunha chegava a casa, depois de fazer o caminho inverso, e preparava-se para fazer novo recado agora à Livinha.
- Ferraunha, vai à farmácia aviar estes medicamentos.
E pôs-lhe um saquinho à volta do pescoço que no interior levava a receita médica e uma nota de mil escudos para pagar os medicamentos.
Mais uma vez, o Ferraunha saiu a toda a velocidade e, pouco depois, estava na farmácia Leitão, aguardando a sua vez de ser atendido.
- Olha o Ferraunha – dizia o empregado. – Que é que te traz por cá?
O cãozito pôs-se a jeito e ele retirou-lhe o saco com a receita e dinheiro.
- Hum… bactrim…paracetamol… ibuprofeno… umas injeções. O Dr, Preto está a receitar muita coisa.
- Béu.. béu… – respondeu o cãozito.
A farmácia quase não tinha clientes e o empregado pôs-se a aviar calmamente a receita. Depois, pegou no dinheiro e começou a fazer o troco.
De repente, o sossego deste quase bucólico espaço foi quebrado por uma voz ameaçadora:
- Todos quietos! Mãos ao ar! Isto é um assalto…

sábado, maio 09, 2020

O banquete do crocodilo

Um agricultor alentejano, já entrado nos anos, tinha uma bela barragem na sua  herdade.
Depois de algum tempo sem ir ao local, decidiu naquele dia ir dar uma olhadela geral para ver se estava tudo em ordem.
Pegou num balde para aproveitar o passeio e trazer fruta do pomar e, ao aproximar-se do lago, ouviu vozes femininas, animadas e divertidas. Então viu um grupo de jovens a tomar banho no lago, completamente nuas.
«Oh! Que seres tão belos e virginais!...».
Chegou mais perto e, com isso, todas elas, ao verem-no, fugiram para a parte mais funda do lago, deixando apenas a cabeça fora de água.
Uma delas gritou:
- Não saímos daqui enquanto o senhor não se for embora.
O alentejano, que não era burro, respondeu:
- Calma meninas, eu não vim até aqui para as ver a nadar ou para as ver sair nuas do lago... 
E, levantando o balde, acrescentou:
- Eu só vim dar comida ao crocodilo...




Nota: autor desconhecido. Enviado por mão amiga...

sexta-feira, maio 08, 2020

A fuga do grande artista

Na casa do Largo de Castela, o Estorietas andava de um lado para o outro desesperado.
- Destruiu, aquela malvada destruiu tudo. Nunca devia ter confiado nela.
Contemplou os seus quadros completamente desfeitos.
- Como pode ter feito isto à minha magnífica arte? Ah! Não aguento isto. Não consigo respirar. Vou-me embora.
Encheu apressadamente uma mala e saiu de casa, partindo na direção da encosta do moinho. Fez a escalada em pouco mais de dez minutos, depois, lá de cima,
contemplou Ourém…
Ali se deixou ficar em contemplação, sentindo-se cada vez mais calmo.
A certa altura, viu o jeep ir na direção da sua casa.
- Ah! Pensam que vão prender-me, mas nunca mais me encontrarão. Vou-me embora, vou partir, vou para bem longe. Uma nova vida me espera.

Há quem diga que, considerando aquele momento, o Estorietas e a Ciete estiveram mais de 50 anos sem voltar a encontrar-se… mas, na ficção, tudo pode ser diferente.

quinta-feira, maio 07, 2020

O esfumar da Arte

Entretanto, na casa roxa do início da Rua de Castela, travava-se uma intensa batalha de palavras entre a Cietezinha e o Estorietas:
- Tens de me deixar sair, Estorietas. Isto está a ir demasiado longe.
- Anda, anda ver os nossos quadros e diz-me que queres sair, diz-me que não é Arte. Será que não sentes a intensidade da criação?
Puxou-a por um braço, arrastando-a para junto dos quadros.
- Olha esta maravilha. Até te pus loira, mais bela que a Deolinda…
Ela ficou furiosa.
- Não me compares com essa serigaita. Não vale nada comparada comigo…
- Então, vê este outro em que apareces como mulher com máscara de tigre…
- Não me interessa…
- Mas vê! – e passou-lhe o quadro para as mãos.
Ela não aguentou mais. Pegou no quadro e desfechou com ele na cabeça do Estorietas. Ele ficou atordoado e ela aproveitou para lhe enfiar com outro em volta do pescoço.
- Vê, vê o que eu faço aos teus malditos quadros – e destruiu tudo em cima dele sem que o Estorietas pudesse reagir.
Pobre Estorietas! A ver a sua arte de que tanto esperava a esfumar-se numa tarde de tragédia.
- Os meus quadros… - balbuciava.
Ela aproveitou a sua falta de discernimento para correr para a porta e fugir.
«Vou já para o posto da GNR ver o que se passa com os outros».
Ainda não tinha percorrido metade da distância que a separava da esquadra quando o comandante e o guarda Ernesto chegaram junto dela.
- Como conseguiu chegar aqui?
- Atordoei-o com os próprios quadros. Agora quero ver com estão os meus amigos.
- Nós acompanhamo-la. Depois vimos prendê-lo…
E, ao fim da tarde, para grande desgosto do João, as vinte miúdas foram postas em liberdade e puderam regressar a casa, depois de terem aceitado as desculpas do comandante e perante o olhar desconfiado do Dr. Armando.
- De futuro, em vez de fazerem uma manifestação, venham avisar-nos primeiro… E amanhã esperamos pela Teresinha para mais uns bolinhos…
Lá foram todas a rir da situação já esquecidas do Estorietas, enquanto o João chuchava no dedo por deixar de estar no meio de tanta menina.

quarta-feira, maio 06, 2020

Equívoco esclarecido

No interior da esquadra, o ambiente era carregado. O comandante passeava-se diante dos miúdos com um cassetete nas mãos e ia dizendo:
- Mas que foi que vos deu na cabeça para fazerem uma manifestação de apoio a um preso político?
Eles parecia não perceberem o que se estava passando até que a Teresinha avançou e respondeu:
- O comandante permite-me que fale?
Ele olhou para ela e só então a reconheceu:
- A Teresinha? Mas que faz no meio destes arruaceiros? A menina ainda ontem esteve aqui a cozinhar para nós…
- Julgo que há uma confusão, comandante. Nós não estávamos a fazer qualquer manifestação politica…
O João começou a ver o caso mal-parado.
«Bolas. Estava aqui tão bem. Esta vai estragar tudo. Já não passamos aqui a noite».
- Mas vocês até tinham um cartaz: “Liberdade para a Ciete”.
- Esse cartaz era dirigido ao Estorietas, comandante. Ele sequestrou a Cietezinha…
Naquele momento, a Ceuzinha desatou num pranto clamoroso:
- A minha irmã, comandante, a minha irmã…
O Comandante só então percebeu:
- Então, fui enganado pelo Estorietas. Ele telefonou a avisar que era uma manifestação para libertar uma perigosa comunista.
- É isso, comandante, o Estorietas está louco com a mania que é o maior pintor do Universo e sequestrou a minha irmã para lhe servir como modelo. A pobre nem come devidamente.
- Mas isso não pode acontecer. Guarda Ernesto!
- Aqui estou, meu comandante.
- Prepare-se para irmos a casa do Estorietas. Ele é o culpado de toda esta situação – virou-se para os miúdos: - Por agora, ficam aqui, pois vou precisar do vosso testemunho, mas podem ficar tranquilos que nada lhes irá acontecer.
«Pronto. Tudo estragado – pensava o João».

terça-feira, maio 05, 2020

O CFL, um antro de comunas

Pouco depois, no CFL, a Florência relatou ao Dr. Armando tudo o que tinha visto passar-se na Rua de Castela.
- Não pode ser – gritou. – O meu colégio está perdido. Que pensará lá no Céu o Fernão Lopes e todos os que contribuíram para a maravilhosa cultura do nosso país. Vou apurar tudo e expulsar essas miúdas.
Pegou no sobretudo e dirigiu-se para o seu Peugeot.
«Quem diria? O meu colégio a formar células de comunas… ainda vou preso também».
Atirou-se para dentro do carro e arrancou com toda a velocidade. O seu coração estava acelerado. A sua mente não tinha um momento de descanso.
Frente à taberna do Frazão, teve de travar com toda a força, senão tinha batido no carro da Dra. Lurdes Moreira que, naquele momento, se dirigia ao CFL para dar uma aula. Valeu-lhe o apitar constante da professora.
Um pouco mais à frente, só a intervenção dum anjo guardião fez com que não atropelasse um rapaz que atravessava distraidamente a Avenida.
Continuou a acelerar e, pouco depois, travava frente ao posto da GNR. Saiu do carro e tentou entrar, mas um guarda não lho permitiu.
- O que pretende? – perguntou um guarda. – Neste momento, não pode entrar…
- Fui informado que tinham prendido alunos do CFL. Pretendo saber o que se passa.
- Neste momento estão a ser interrogados pelo comandante. Tem de esperar aqui.
- Mas eu quero saber o que se passa. – e tentou forçar a entrada.
Mas o guarda manteve-se firme no posto.
- O senhor espera aqui, senão vejo-me obrigado a detê-lo.
E o Dr. Armando teve de esperar. Mesmo assim, não deixou de profetizar umas ameaças.
- Ah! Esses miúdos não sabem o que os espera quando os apanhar a jeito!!!
Estava muito longe de perceber que a situação estava quase a esclarecer-se.

segunda-feira, maio 04, 2020

Danos colaterais, um testemunho

Naquele dia, àquela hora, a Florência descia a Rua de Castela acompanhada da sua amiga Luísa. Nas suas memórias de Ourém, ela relata que iam carregadas com material de desenho comprado na papelaria Godinho ou na papelaria Joaquim da Cruz: Uma pasta de cartão com papel almaço, papel cavalinho, régua T, estojo com compasso e tira-linhas, esquadro, transferidor, ´´punaises´´, lápis 1 e 2, borracha, tinta da china, guaches,  pincéis, afiadeira, godés, vidro para preparar as tintas, pano para limpar os pincéis.....
A rua tinha uma ligeira descida e ao chegarem quase ao fim, um dos cavalos da GNR levantou-se nas patas traseiras e ameaçou-as. Escorregaram e caíram na calçada. Os elásticos, já sem força, não deram conta da situação e o material de desenho espalhou-se para todos os lados. 
A Florência nem sabia explicar o que tinha visto.
- Parecia um cow-boy em cima de um cavalo com as patas no ar. Que medo!
O GNR, com o bastão, apontava-lhes uma certa direção. 
- Para casa! Já para casa!
Não sabiam se deviam rir ou chorar tão insólita era a situação. A régua T, que era maior do que a pasta, molhou-se e nunca mais conseguiu desempená-la.
Mas, dali, conseguiram aperceber-se de que a miudagem era levada para a esquadra da GNR. E, daí a pouco, todo o CFL estava avisado do que acontecera.

sábado, maio 02, 2020

A grande manifestação

Mas era tarde demais.
Naquele momento, começou a ouvir-se no largo frente à casa roxa um grande ruído.
- Liberta a Ciete! – parecia que um grande grupo gritava.
O Estorietas ficou admirado. Chegou à janela que abriu, e deparou-se com uma manifestação de cerca de 20 miúdas: a Ceuzinha, a Mari’mília, a Teresinha, a Livinha, todas com um ar de poucos amigos. E, no meio delas, como sempre, o famigerado linguiça de Madrid.
«Foi ele! Foi aquele sacana! – pensou o Estorietas».
- Que é que vocês querem? – gritou lá para fora.
- Liberta a Ciete. Sabemos que está sequestrada por ti…
- É mentira. Estamos num projeto de pintura que levará a nossa terra à Glória…
- Estorietas, liberta a minha irmã, senão invadimos a tua casa.
- Nem pensem. Sumam-se ou chamo a GNR.
Fechou a janela e pegou no telefone enquanto a Ciete contemplava aterrorizada os seus gestos de louco. Do outro lado, ouviu-se:
- Aqui, posto da GNR de Vila Nova de Ourém. Diga em que podemos servi-lo.
- Fala o Estorietas. Por favor, ligue-me ao comandante. É muito importante.
A ligação não tardou a estabelecer-se. Do outro lado, ouviu a voz do comandante do posto.
- Então, meu caro Estorietas? Como passa? Há muito tempo que não falamos.
- Não há tempo a perder, comandante. Há uma manifestação contra o regime no largo em que se inicia a Rua de Castela. Exigem a libertação de uma tal Ciete, com certeza, uma perigosa comunista.
- Uma manifestação? Em Ourém? Não posso crer…
- Venha imediatamente, comandante. Oiça os urros deles…
E levou o telefone à janela abrindo-a para ele ouvir melhor.
O comandante compreendeu e imediatamente deu uma ordem.
- Guarda Ernesto, mobilize imediatamente vinte guardas e mande aparelhar os cavalos. Temos de intervir na Rua de Castela frente à casa do Estorietas.
- Às suas ordens, meu comandante.
No “atelier”, o Estorietas dizia para a Ciete:
- Não saias daí. Isto vai dar para o torto.
Voltou a abrir a janela e gritou lá para fora.
- Vão embora. Olhem que vão arrepender-se.
Mas a multidão de miúdos não desistia:
- Liberdade para a Ciete! Liberdade para a Ciete!
Pouco depois, os manifestantes ouviram um tropel ruidoso e, pelo largo, viram irromper um grupo de guardas da GNR, a cavalo, e com o comandante à frente que se apercebeu logo da situação.
«Mas não é possível! São miúdos. Aquele Estorietas em que estaria a pensar para falar numa manifestação contra o regime? O melhor é prendê-los e esclarecer tudo».
- Guardas, cerquem os manifestantes e conduzam-nos à prisão, sem violência.
Num instante, os miúdos com a Céu à frente, ficaram cercados pelos guardas e foram conduzidos à força para a prisão da GNR. Aos mais renitentes, os guardas forçavam com uma cabeçada dos cavalos, mas, garante-se, não houve qualquer violência naquela manhã.
No posto, o comandante desmontou, mandou abrir uma cela e ordenou:
- Vamos, entrem todos para aqui! Vamos ter de esclarecer o que se passou.
E mais uma vez, o João e a Teresinha foram parar à prisão da GNR. Desta vez, ele estava no meio de vinte miúdas aterrorizadas.
«Jejjjejjjjjejje. Nunca estive tão bem como neste momento. Espero que o comandante não as mande embora e eu possa consolá-las toda a noite».



Continua na próxima segunda-feira

sexta-feira, maio 01, 2020

O elogio do nu

Ao sétimo dia, o “atelier” do Estorietas já estava cheio de telas com a imagem da Ciete nas mais diversas posições.
Ele continuava a adorar contemplá-la e desenhá-la, mas, por vezes, ela sentia que ele se excedia e começou a pensar que a irmã talvez tivesse razão quando disse que ele estava louco, que não batia bem…
«Esta fixação em mim… é doentia».
- Estorietas, quando acabamos este projeto?
- Acabar? Tu não percebes que vamos ser famosos. Eu, o Rafael de Castela, tu, a Dama do Castelo… o nosso destino é continuar, continuar sempre…
- Mas como? Já me desenhaste de toda a maneira e feitio…
- Não interessa, a Arte é uma paixão que transcende o âmago da substância…
Ela ficou estupefacta e a pensar que ele já não dizia coisa com coisa. A irmã tinha razão: ele estava transtornado de todo…
- Cietezinha, tenho mais uma coisa para te pedir. De certeza, apreciarás o resultado…
Ela olhou-o surpreendida. Que mais poderia ele querer?
- Sabes que um ritual fundamental entre os clássicos era a representação do nu. Mas eu não vou por aí, não tenhas receio. Quero que poses para mim, coberta com aquelas sedas. Vamos recriar uma Odalisca de Hayez.
Ela afogou um grito de surpresa.
- O quê? Estás doido?
- Nunca estive tão lúcido. A nossa fama só atingirá o auge quando reproduzirmos as grandes obras dos clássicos. Só te peço que envergues aquelas vestes em seda. Vamos, trata de as vestir, eu nem olho…
- Nem penses…
Ela já não sabia como havia de escapar àquele louco. Olhou para a porta suplicante, mas ele interpôs-se quando tentou escapar.
- Ah! Ah! Tens de fazer o que quero. Vais ser famosa...
Mal sabiam que a Ceuzinha e a Teresinha estavam a espreitar pelo buraco da fechadura e tinham assistido a tudo.



Pobre pequena… nas mãos de um louco...

quinta-feira, abril 30, 2020

Um projeto de pintura

E a Ciete voltou ao “atelier” do Estorietas nos três dias seguintes o que começou a despertar a curiosidade das colegas.
Um dia, a Ceuzinha manifestou a sua estranheza.
- Ouve lá, minha irmã, por que razão não almoças comigo já há uns quatro dias…?
- Oh! Não sei se te posso dizer…
A outra ficou cheia de curiosidade.
- Claro que podes. É algo relacionado com o Estorietas?
A Cietezinha ruborizou-se muito.
- Sabes, temos um projeto artístico…
A outra quase que ficou sufocada, a tossir sem poder.
- Um projeto artístico?
- Sim, ele tem uma grande vocação para a pintura. É um artista maravilhoso. E eu tenho funcionado como a sua modelo privativa.
- Tu estás apanhada, minha irmã…
- Ah! Se tu visses os quadros que ele faz. Aquela Luz… Aquela Paixão que se desprende deles… é indescritível.
- Não posso crer no que estou a ouvir. Uma miúda tão ajuizada como tu a ser arrastada para um projeto por um louco. Por que tu sabes que ele não bate bem, não sabes?
- É a clarividência total…
- Olha, tem cuidado com os estudos. O Sr. Bragança, quando souber, não vai gostar nada.
- Ele não precisa de saber…
Foram para as aulas e a Ceuzinha foi logo contar à Teresinha.
- Sabes uma coisa? Ih! Ih! Ih! Ih! A minha irmãzinha anda metida num projeto de pintura com o Estorietas.
- Minha alma quase me salta pela boca – replicou a Teresinha. – Mas isso pode ser perigoso para ela. Ele, às vezes, passa-se.
- Temos de estar atentas e intervir se for necessário.
- Conta comigo, vou já falar com a Mari’mília e o João.
E, ao fim, de dois ou três dias, toda a miudagem sabia o que se passava na casa roxa do Largo de Castela.

quarta-feira, abril 29, 2020

A revelação do grande artista

Os dias foram passando e nada acontecia. O Estorietas olhava para a pequena, mas o ar dela fazia crer que não tinha recebido o seu bilhete. O grande artista já desesperava. Se ela não lhe respondesse quem lhe poderia servir de modelo? A Deolinda? A Mari’mília? Ambas esculturais, mas nenhuma tinha aquele ar de inocência, amargura e dureza que a Cietezinha tantas vezes ostentava.
Mas um dia tudo mudou…
Iniciava-se a aula de Matemática e o Estorietas notou que os seus livros tinham sido remexidos. Procurou avidamente e, entre eles, lá estava um bilhete.
«A resposta dela» - pensou.
Abriu rapidamente e leu:
«Estorietas
Fiquei surpreendida com a tua mensagem. Nunca pensei que pudesses pedir desculpa alguma vez pelos teus irrefletidos actos. Para além disso, convidares-me para um encontro excede tudo o que poderia esperar de ti. Mas resolvi dar-te o benefício da dúvida e proponho-te que o nosso encontro seja ao cimo da Rua de Castela, em local onde já não passam os nossos colegas do CFL, amanhã, após a aula de História e antes de irmos almoçar.
Ciete»
Nessa noite, o Estorietas não dormiu.
«E se isto corre mal? Que lhe vou dizer?».
Mas, no dia seguinte estava mais calmo. E mais seguro ficou quando a viu chegar ao cimo da Rua de Castela com os seus livros e a lancheira com o almocito.
- Bom, espero que tenhas uma boa razão para me fazeres passar por isto – começou ela.
- Tinha muita urgência em falar contigo. Sabes? Sinto que tenho uma alma de artista… e tenho-me dedicado à pintura. Fiz um atelier em minha casa e passo grande parte do meu tempo a pintar.
- Um ofício tão legítimo como qualquer outro. E que tenho eu a ver com isso?
- Até agora só tenho desenhado flores, natureza morta. Preciso de alguém que transmita calor, paixão aos meus quadros.
- Não me venhas com essa. Olhas sempre para mim com ar estranho quando as minhas notas são melhores que as tuas…
- Esse ar estranho que tenho é porque sinto que há algo em ti que poderá fazer com que me transcenda a mim próprio. Cietezinha, eu vejo em ti uma Adjani…
- O quê? Que é isso?
- Uma futura atriz do cinema francês muito bela. Vai ter vários óscars. Eu penso poder levar-te aos píncaros da fama.
- Não percebo.
- Cietezinha, queres ser a modelo para as minhas pinturas?
- O quê? Estás louco, Estorietas?
- Nunca estive tão lúcido como neste momento. Anda, acompanha-me ao meu estúdio. Podemos almoçar lá os dois e falar, depois voltaremos às aulas.
Pouco depois estavam no “atelier” do Estorietas. Ela notou como tudo estava bem delineado e ele mostrou-lhe alguns quadros que já tinha feito.
- São bonitas as tuas pinturas…
- Finalmente, um elogio.
Mais para a direita naquela sala com muita luz, estava um cavalete com uma tela em branco.
- E qual vai ser o teu próximo desenho?
- Queria desenhar o teu rosto. Tens um ar tão profundo… Mas, agora, é melhor almoçarmos. Traz a tua comidinha. Eu também tenho o meu almoço já arranjado.
Efetivamente, em cima de uma mesa, já estavam talheres e pratos para dois pelo que puderam tratar da barriguinha.
Pouco depois de terem comido, ele disse:
- Agora, senta-te naquela cadeira, põe o teu ar de menina de sangue azul residente no Castelo e deixa-me desenhar o teu rosto.
Ela obedeceu e ele esboçando durante cerca de trinta minutos o rosto dela.
- Pronto, já está. Podes vir ver.
Ela veio e ficou encantada.
- Eu… eu sou assim?
- Não tenhas qualquer dúvida. A tua beleza é insuperável.
- Estorietas, como estou bonita! Como conseguiste dar-me esta expressão?
- É arte, menina, arte e paixão. Podemos ficar famosos, Cietezinha. Eu, um grande pintor, um verdadeiro Rafael e tu a sua modelo.
- Olha, não divagues. Já estamos atrasados para as aulas.
- E amanhã posso contar contigo?
Ela hesitou um pouco, mas, por fim, disse:
- Sim, amanhã voltaremos ao teu estúdio…

terça-feira, abril 28, 2020

O apelo a Florbela

Ao fim da tarde, a Cietezinha chegou ao jardim da sua casa na Vila Medieval de Ourém e começou a rever a matéria do dia. Tirou os livros de Ciências e Matemática e colocou-os sobre uma mesa sem notar que um papel tinha caído do interior de um deles.
Apareceu a Ceuzinha.
- Olha! Caiu um papel.
A Céu pegou no papel e desatou a ler.
- Oh! Ah! Ah! Ah! Ah! Minha irmã vai ter um encontro…
- O quê? Não estou a perceber nada.
A Ceuzinha estendeu-lhe o papel e ela ficou toda ruborizada.
- Meu Deus! Aquele gato esfolado está maluco de todo…
- Minha irmã vai ter um encontro - dizia a Ceuzinha aos saltos - Vou já telefonar à Teresinha.
E foi para o interior da casa de onde ligou para a pensão Simões.
- Teresinha, tenho uma coisa louca para te contar. Blá… blá… blá…
Esteve ao telefone mais de um quarto de hora.
Cá fora, a Cietezinha parecia embevecida.
«Mas o que é que ele quererá de mim? Que hei de fazer? Florbela, por favor, ajuda-me».
E, como que por encanto, apareceu-lhe nas mãos «A mensageira das violetas» que abriu ao acaso e começou a ler.

Não sei quem és. Já não te vejo bem...
E ouço-me dizer (ai, tanta vez!...)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem? 

Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?...
- Não sei se tu, amor, assim me vês!...
Nossos olhos não são nossos, talvez...
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!... 

És tudo e não és nada... És a desgraça...
És quem nem sequer vejo; és um que passa...
És sorriso de Deus que não mereço... 

És aquele que vive e que morreu...
És aquele que é quase um outro eu...
És aquele que nem sequer conheço...

«É verdade. Nem o conheço, não posso duvidar das suas intenções».
E, depois de refletir um bocado, pôs-se a escrever uma nota em resposta à missiva do Estorietas. Dobrou o papel e guardou-o cuidadosamente na pasta.
Pouco depois, surgiu a Ceuzinha.
- Então, minha irmã, já sabes o que vais fazer?
- Não vou fazer nada. Nem lhe respondo.
- Fazes mal, parece um rapaz bem intencionado.
E tudo ficou assim. Quando foram para casa, a Ceuzinha pensava que a irmã não lhe tinha dito a verdade toda, por isso, iria dar-lhe mais atenção sem ela dar por isso…

segunda-feira, abril 27, 2020

A arte nasce dalguma paixão

No seu “atelier” de pintura na casa rosa da Rua de Castela, o Estorietas contemplava extasiado a sua última obra.
«Que beleza! Que definição! Mais luz que num Van Gogh…».
Mas não se sentia completamente satisfeito.
«Preciso de mais. Preciso de algo que humanize a minha arte. Estou a arder por algo indefinido… E se eu lesse um pouco de Pessoa?».
Um texto que tinha à mão tinha a designação de «Heróstato». Pegou nele e leu ao acaso:

«Para que a arte possa ser arte, não se lhe exige uma sinceridade absoluta, mas algum tipo de sinceridade. Um homem pode escrever um bom soneto de amor sob duas condições - porque está consumido pelo amor, ou porque está consumido pela arte. Tem de ser sincero no amor ou na arte; não pode ser ilustre em nenhum deles, ou seja no que for, de outro modo. Pode arder por dentro, sem pensar no soneto que está a escrever; pode arder por fora, sem pensar no amor que está a imaginar. Mas tem de estar a arder algures. De contrário, não conseguirá transcender a sua inferioridade humana.»

«E eu ardo, porque não lhe pedi perdão… - pensava o Estorietas.»
Surgiu-lhe uma ideia, mas hesitou antes de avançar com ela.
«Se calhar, ainda está zangada comigo, mas era a pessoa indicada para me servir como modelo…».
Sentou-se numa cadeira e com um ar desesperado passou a mão pela cabeça. Estava visivelmente nervoso. Tal e qual um artista no momento em que a ideia explode.
«Tenho de falar com ela? Mas como? Virar-me-á as costas, não me ouvirá… Já sei, vou escrever-lhe um bilhete e ponho no meio dos livros dela…».
No dia seguinte, no CFL, a primeira aula era de Ciências Naturais. Quando a DRa. Lurdes Moreira mandou sair os alunos e abandonou a sala, o Estorietas deixou-se ficar para trás. O lugar dela era na primeira fila, o mais à direita, mesmo junto à porta. Um alvo fácil…
Ia nervoso, bastante nervoso. Se fosse apanhado a fazer aquilo, ainda diziam que lhe estava a espiar os apontamentos. Mas teve sorte. Abriu um livro e deixou lá o bilhete.

«Cietezinha
Espero que já me tenhas perdoado pelo meu comportamento no salão da banda. Tenho um pedido para te fazer, mas para isso preciso de me encontrar a sós contigo. Acredita, sou um rapaz honesto, as minhas intenções são as melhores. Por favor, diz-me um sítio onde nos possamos encontrar.
Sempre amigo
Estorietas»

Ao sair, ainda olhou para todos os lados. Não vinha ninguém. Respirou aliviado e foi para o recreio onde já era estranhada a sua ausência.
- Anda aqui marosca – resmungava o Amândio
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